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António Bagão Félix
Trabalho: de pessoas e não de meros recursos

A expressão “Recursos Humanos” e até mesmo as suas iniciais RH estão generalizadas enquanto modo de referência ao colectivo de pessoas numa organização. Ele é recursos financeiros, ele é recursos informáticos, ele é recursos materiais, ele é recursos tecnológicos, ele é recursos naturais, ele é, enfim e às vezes só no fim, recursos humanos. Ou seja, meios ou instrumentos para uma determinada finalidade. Historicamente, passou-se do velho conceito marxiano de “força de trabalho” para esta perspectiva igualmente redutora. Bastaria, aliás, substituir a palavra “recursos” pelo sinónimo “meios” para melhor se percepcionar, quanto às pessoas, quão discutível é a referida expressão.

É óbvio que os recursos das pessoas são humanos, mas as pessoas não são recursos (meios) humanos.  A tecnocrática expressão estendeu-se a tudo que diz respeito à gestão. De tal sorte que há uma crescente e inquietante tendência para ver as pessoas como componentes meramente instrumentais. E, ao mesmo tempo, evidenciando a natureza adjectiva como alguns vêem o trabalho (dos outros). Hoje a aridez e a impessoalidade com que, não raro, são tratadas as questões laborais é o sinal desta visão estritamente instrumental. É assim que, agora, se fala menos em despedimentos (de pessoas), antes se diz que há reestruturações (de organizações) ou, em inglês envergonhado e quantitativo, “downsizing” …

Esquece-se, amiúde, que o primeiro fundamento do valor do trabalho é a própria pessoa. É como pessoa que se é sujeito do trabalho. O trabalho nem é um bem-mercadoria, nem um elemento impessoal da organização produtiva. Diz o Papa Francisco: “é o trabalho que torna o homem semelhante a Deus, pois com o trabalho o homem é criador, é capaz de criar, de criar muitas coisas; até mesmo de criar uma família para seguir em frente […]. É a primeira vocação do homem: trabalhar. E isto dá dignidade ao homem. É a dignidade que o faz assemelhar-se a Deus. A dignidade do trabalho”.

Devemos ter sempre presente que o trabalho tem uma dupla dimensão: objectiva e subjectiva. Objectivamente, enquanto noção económica e técnica, consiste no conjunto de actividades, meios, instrumentos e técnicas para a produção de bens e serviços. Na sua significação subjectiva, trata-se essencialmente de o ver à luz da inerente dignidade do trabalho, porque realizado por uma pessoa. É aqui que se exprime, em plenitude, a sua dimensão ética e deontológica. Esta visão humanista deveria sempre ter preeminência. São João Paulo II, na Encíclica Laborem Exercens, escreveu que “o fundamento para determinar o valor do trabalho humano é o facto de aquele que o executa ser uma pessoa”, para concluir que “o trabalho é para o Homem, e não o Homem para o trabalho”.

Com a globalização desregrada, tem-se acentuado a gestão das pessoas como mera gestão de recursos. O idadismo (ideologicamente significando a atitude preconceituosa e discriminatória com base na idade, levando ao descarte das pessoas ainda relativamente novas nas empresas), a tecnocracia economicista (ou seja, a prevalência dos meios, independentemente dos fins), o poder burocrático (uma forma gélida de separar meios e fins) têm conduzido a formas desumanizadas, senão mesmo a uma perigosa coisificação das pessoas.

É preocupante a rarefacção de uma abordagem personalista em favor de estritos critérios de eficiência, de rendibilidade e de eficácia. As organizações devem ser consideradas, em primeiro lugar, como “sociedades de pessoas” numa expressão primacial de uma harmoniosa “ecologia humana” de que falava São João Paulo II. A gestão deve ser concretizada como uma coordenação de saberes, de ideais, de aspirações, de valores e não apenas de recursos. Tudo isto só pode ser feito com princípios e códigos de conduta que dêem alma, substância, espírito de corpo às organizações e que melhor realizem o compromisso entre respeito pelo trabalho, equidade, rendibilidade e harmonia interna.

Bento XVI na sua Encíclica Caritas in Veritate interrogava-se sobre o que, nos tempos actuais, é o significado da palavra decência aplicada ao trabalho? E responde: “significa um trabalho que, em cada sociedade, seja a expressão da dignidade essencial de todo o homem e mulher […]. Um trabalho que deixe espaço suficiente para reencontrar as próprias raízes a nível pessoal familiar e espiritual.”

A Doutrina Social da Igreja, desde a primeira encíclica Rerum Novarum de Leão XIII (1891) – então focada nas consequências da Revolução Industrial sobre a “questão operária” – até outras encíclicas e exortações apostólicas, tem evidenciado as preocupações sobre a importância e s evolução do trabalho para a realização das pessoas. Todas as pessoas numa organização valem em primeiro lugar pelo que são. O que as distingue é a diferenciação do seu trabalho objectivo, e não formas de diferenciação subjectiva ou existencial.

 

António Bagão Félix

texto escrito com a grafia anterior ao AO90


FOTO: Timon Studler na Unsplash