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Pe. Alexandre Palma
Corpo e corporativismo
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Períodos de escassez e tensão trazem consigo alguma verdade. Eles têm o condão de tornar visível o que as rotinas da normalidade permitem camuflar. Bem assim na vida dos indivíduos como das sociedades. O cansaço natural que decorre de mais de um ano vivido sob o espectro da pandemia e a espera delongada por uma vacina que nos subtraia aos riscos do vírus activaram em nós o mais básico instinto de sobrevivência. É certo que séculos de educação e cultura sublimaram esses instintos animalescos. Neste sentido, pelo menos, a nossa espécie evoluiu mesmo. Mas, como em estádios mais primitivos da nossa história, o presente contexto pandémico exacerbou em nós algumas das manhas de que nos servimos outrora para salvar a nossa pele. Trata-se de algo compreensível, mas que vem com um alto custo civilizacional: salva-se o mais forte, expõe-se o mais frágil.
A situação é-nos familiar. Em Dezembro último iniciou-se o processo de vacinação. Vacinar a população tornou-se um desígnio social. Receber a vacina tornou-se um objectivo pessoal. Só isso explica a ansiedade por saber «quando serei vacinado» ou que este se tenha tornado um assunto recorrente das nossas conversas. A escassez de vacinas disponíveis, agravada pelos sucessivos atrasos na sua distribuição, aumentou ainda mais o valor desta escapatória para a vida confinada pela pandemia. E tornou aqueles que a ela acedem uma espécie de privilegiados destes tempos estranhos.
O processo de vacinação parece decorrer, no fundamental, com lógica e ética. Deu-se prioridade aos cuidadores e aos mais vulneráveis aos efeitos do vírus. Mas nem por isso, ao longo deste percurso (que está ainda longe da sua última estação), deixaram de existir fraudes ao sistema e grupos de pressão reivindicando para si um tratamento especial. Embora situado e de escala limitada, este é um sintoma social que importa considerar. Por um lado, é o tal instinto de auto-sobrevivência a mostrar como há muito de primitivo em nós. Por outro lado, é a consequência de uma sociedade ainda muito tomada pelo corporativismo. É natural que, numa sociedade plural, existam grupos de interesse e de pressão. Todavia, menos desejável será que essas corporações hipotequem o sentido do todo à salvaguarda dos próprios interesses. Sobretudo, quando do lado de fora desses interesses ficam alguns dos mais frágeis da sociedade, desde logo por não serem uma corporação com voz capaz de se fazer ouvir no espaço público.
Ao longo da sua história, o pensamento cristão beneficiou de conceitos gerados e de ideias desenvolvidas noutros âmbitos sociais. O contrário também é verdade. O cristianismo legou às sociedades de que foi fazendo parte algo da sua própria forma de olhar o mundo e a vida. Talvez ele possa hoje, neste contexto pandémico, repropor o seguinte às nossas sociedades: somos um corpo, não um equilíbrio de corporações. Somos uma sociedade com muitos membros – é certo –, mas, como o descreveu S. Paulo, um só corpo (cf. 1 Cor 12, 12-27). A diferença de nos entendermos mais como corpo e menos como corporação está nisto: nenhum membro goza de saúde se todos os restantes membros o não gozarem também. Esta não é uma visão idealista, mas pragmática da realidade. A pandemia demonstra-o. Enquanto não estivermos todos a salvo, a vida social e económica não pode retomar, com prejuízos para todos. Enquanto isso não suceder, multiplicar-se-ão as variantes do vírus que não permitirão afastar de vez as nuvens da pandemia que há um ano e tal pairam sobre as nossas cabeças. No regime da corporação procura-se a vantagem para a parte. Na lógica do corpo busca-se o bem do todo, ao ponto de, segundo a mais genuína indicação evangélica, poder colocar o outro à minha frente. Precisamos desta outra vacina para curarmos este nosso outro corpo. Precisamos desta vacina inspirada no Evangelho de Jesus para sanar o nosso corpo social.