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P. Gonçalo Portocarrero de Almada
A pré-história de Fátima
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Em Portugal, o mês de Maio é, por uma razão muito especial, particularmente mariano: foi o escolhido por Nossa Senhora para se fazer ver, na Cova da Iria, pelos irmãos Francisco e Jacinta Marto, já canonizados, e por sua prima, a serva de Deus Lúcia.
Fátima não se entende se não se tiver presente as famílias dos videntes que, por serem primos tão próximos, era como se fosse a mesma. Foi nessa ‘escola’ que os três se prepararam para a sua missão, quer como interlocutores de Nossa Senhora, quer como exemplos ‘encarnados’ da mensagem, pela santidade das suas vidas, já confirmada nos dois irmãos Marto.
Em carta de 23 de Novembro de 1988 à Irmã Lúcia, o então reitor do Santuário de Nossa Senhora de Fátima teve a muito feliz iniciativa de lhe pedir que pusesse por escrito as lembranças relativas aos seus pais. Essas recordações sobre o seu pai e mãe vieram a ser a quinta e sexta memórias, respectivamente. Era também intenção do então reitor instalar, na casa de família da Lúcia, “um lugar de reflexão sobre a família”.
Não consta que este projecto se tenha realizado, o que é pena. Talvez o local não fosse o mais indicado, dada a sua exiguidade, mas seria pastoralmente muito conveniente dar a conhecer o ambiente cristão das famílias dos pastorinhos de Fátima. Eram, certamente, famílias muito normais, mas muito cristãs também. Lúcia escreveu: “eu recordo de meus pais exemplos admiráveis de família cristã, unida na fé, na esperança e no amor”.
Na quinta memória, Lúcia recorda um episódio significativo da vivência cristã, simples e profunda, de seus pais.
“Recordo aqui o que aconteceu um dia: o Pai estava em casa, sentado (…) nos degraus duma escada que dava acesso ao sótão. A Mãe estava sentada em frente, encostada ao canto da lenha, a descascar batatas. Eu era pequena, andava fora no pátio, a brincar (…). Vi que, junto do portão, chegou um pobre a pedir esmola. Corri a entrar em casa e disse ao Pai:
- Está ali um pobre a pedir esmola.
O Pai levantou-se, foi à lareira e, com o canivete, cortou o cordão duma (…) morcela e, com ela na mão, perguntou à Mãe:
- Olha lá, posso dar isto a esse pobre? Não nos vai fazer falta?
A Mãe respondeu:
- Podes. Nunca o que nós demos aos pobres nos fez falta.
O Pai, contente, foi junto do portão levar a morcela ao pobre. Este, ao vê-la, levantou as mãos e rezou um Pai-Nosso e uma Avé Maria. Enquanto que o pobre rezou, o Pai permaneceu junto dele, de pé, de cabeça descoberta. O pobre, quando terminou, disse:
- Por si e pela sua menina, para que Deus lhes dê sorte.
O Pai respondeu:
- Adeus, irmão, até à volta!
E, de novo, entrou em casa. Eu corri, indo atrás do Pai e disse à Mãe:
-O pobrezinho rezou pelo pai e por mim, para que Deus nos dê sorte.
A Mãe respondeu:
- E por mim, nada?
Eu fiquei sem saber o que dizer. Então o Pai disse:
- Por ti também, porque tu e eu somos um; tudo o que é meu é teu e é dos nossos filhos.
A Mãe sorrindo, respondeu:
- Assim está bem!”
Na singeleza deste acontecimento, sente-se o pulsar de uma intensa vida cristã. A vivência da caridade, a laboriosidade, a generosidade para com o irmão necessitado, a amabilidade como é fraternalmente acolhido e até convidado a regressar – “Adeus, irmão, até à volta”! – são indícios de uma família que é, verdadeiramente, uma ‘igreja doméstica’. Nota-se também uma simples e profunda piedade doutrinal, uma apurada percepção da unidade e indissolubilidade matrimonial, para além de uma notável alegria e bom humor.
Se existissem mais casais como aquele, decerto haveria mais crianças e famílias felizes, porque, como ensina o Papa Francisco, “a pessoa fiel a Deus e que vive a sua Palavra alcança, na doação de si mesma, a verdadeira felicidade” (Alegrai-vos e exultai, nº 64).