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Hermínio Rico, sj
Vida e estruturas

Começo a escrever durante a viagem de regresso de Nairobi, onde passei umas semanas numa experiência directa duma Igreja jovem, pujante que transborda de vida… e ainda a construir as suas estruturas. As inevitáveis constantes comparações com a experiência eclesial portuguesa não podiam deixar de suscitar a questão: como é que se relaciona esta vida contagiante que testemunha duma forma tão eloquente o potencial de alegria, esperança e motivação que constitui o encontro e o seguimento de Cristo, por um lado, e, por outro, as estruturas sólidas, tradicionalmente bem estabilizadas, claras e distintas, sistemáticas e completas que enquadram toda a vida eclesial? Dão-se bem ou dão-se mal? Ajudam-se mutuamente ou atrapalham-se?

Antes de mais, em que é que estou a pensar quando uso este termo “estruturas”, propositadamente genérico e plurívoco? Referido à vivência das comunidades cristãs, inclui tudo o que ganha forma estabelecida, qualidade permanente, modo ou função que depois se pode repetir. E isso inclui desde as igrejas-edifícios, até às rubricas da liturgia; duma ortodoxia que estabelece bem as fronteiras conceptuais daquilo que são os termos e a linguagem que declara com rigor as crenças fundamentais da fé cristã, até aos costumes, gestos, modos de estar físicos pelos quais se expressa comunitariamente a nossa experiência religiosa.

As estruturas marcam sempre fronteiras, estabelecem procedimentos, ordenam, organizam, fornecem linguagem e ocasião para que todos saibam o modo, o espaço e o tempo em que se podem tornar contribuintes para a acção comum. Elas dão referências claras para os membros se reconhecerem na identidade que estas construções, físicas ou conceptuais, expressam. São uma grande ajuda, permitem a subsistência de uma comunidade organizada, estabelecem expectativas recíprocas e facilitam sobremaneira a participação.

Sem estruturas, a vida pode continuar a brotar, mas desordenada, sem a disciplina que respeita e canaliza todo o seu potencial, com perigos muito reais e rápidos de se perder, tropeçar em si mesma. Sem estruturas, o influxo vital corre o risco da anarquia e da fragmentação em grupúsculos; do desperdício de energias ao ter que estar sempre a inventar as mesmas coisas; da efemeridade, ao não haver suportes de continuidade e apoio.

Mas, é claro, as estruturas têm que ser sempre ao serviço da vida. São para ajudar a suscitá-la, acalentá-la, desenvolvê-la e sustentá-la. Só assim se justifica que sejam criadas e só assim se justificará que continuem a existir. Quando a estrutura deixa de ser serviço à vida e passa a ser mais controlo e exercício de poder pelo poder, aí começam os perigos. Há um risco enorme de os guardiões da estrutura se convencerem, mesmo honestamente, que é a estrutura que cria a vida, quando só a serve.

Porque a vida é o movimento animador que jorra da fonte de todas as coisas, a alma de tudo o que existe, aquilo que personaliza a própria experiência e não a deixa secar e, depois, morrer. Mas, por isso, a vida é algo que não se domina, não se domestica, e que é muito perigoso querer abafar, apesar de essa tentação ocorrer frequentemente.

Será que as duas linhas de desenvolvimento, da vida e das estruturas, têm que crescer em direcções opostas? Se assim fosse, primeiro seria a vida em estado selvagem, incontrolado… e, no fim, estrutura apenas, seca, morta… Aquilo que se mostra no início necessário para salvar a vida seria o que, no fim, a viria inevitavelmente a matar. Algo estaria profundamente errado no sentido fundamental das coisas se assim tivesse que ser.

Talvez a resposta esteja na criatividade permanente. Uma criatividade estruturada, que nasce da profundidade, do esforço de ir aos fundamentos das coisas, não duma reacção superficial que facilmente busca a mudança sem perceber porque se chegou à insatisfação de que se quer agora fugir. A verdadeira criatividade é uma coisa exigente, que requere, ao mesmo tempo, tanto entrar em relação experiencial profunda com a Vida, como conhecer muito bem as estruturas, o sentido que têm, o que justificou a sua criação. Mergulhar impulsivamente nos mínimos sinais novos, muitas vezes ambíguos, de Vida e deitar fora as estruturas terá, a longo prazo, as mesmas consequências degenerativas da atitude medrosa e conservadora de se agarrar às estruturas com todas as forças, como se fossem as estruturas que tivessem permitido a experiência de vida, quando foram apenas tentativas de manter, aprofundar e sustentar a comunhão da experiência de vida.

As estruturas, dentro dum contexto de liberdade e abertura, preservadas de tiques defensivos, podem canalizar e potenciar a criatividade, para que novidade ou a diferença não se tornem incompreensíveis e disruptivas da experiência da comunidade.

Agora que a Igreja olha para o desafio a que chamou Nova Evangelização, exige-se uma profunda, rigorosa identificação das questões, dos obstáculos e dos desafios e uma corajosa abertura à criatividade, reconduzindo todas as estruturas (e, se necessário for, corrigindo algumas até) ao seu serviço à Vida que brota e que se quer ordenar, estimular e potenciar, mas nunca bloquear ou abafar.