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Da miopia à panorâmica (pelo Pe. Alexandre Palma)
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No fundo, para dizer que somos nós quem tem este problema de visão. Embora consciente dos limites desta simplificação, parece que enfermamos de uma espécie de miopia. Vemos com perfeição o que está perto, mas desfocado o que está mais longe e, portanto, sem uma visão clara do conjunto. Temos um olhar treinado para o detalhe, para a questão particular, para o conhecimento especializado, para o pormenor do instante. Mas, como míopes, nos mostramos incapazes de um olhar distanciado e largo, contemplativo da paisagem como um todo, aberto sobre o horizonte que tudo abraça, atento ao contexto dos sucessivos particulares, sensível à relação e interacção desses múltiplos singulares. Temos um olhar particularizado, cuja utilidade prática é incontestável. Escasseia-nos, porém, um olhar panorâmico: a visão total sobre o todo.
Vivemos, sobre este ponto de vista, «um tempo de escombros» - na feliz expressão de D. Manuel Clemente e José Manuel Fernandes. Míope parece ser a economia, quando mostra dificuldade em acomodar o «princípio do bem comum». Míope parece ser a política, arte nobre, mas com frequência esgotada na resolução dos problemas da véspera e já sem forças para antecipar o dia de amanhã. Míope parece ser o conhecimento científico, quando na sua ultra-especialização conhece a fundo cada uma das particularidades da natureza, mas não a vê como um todo harmónico. Míopes, no fundo, somos nós quando no ordinário do quotidiano perdemos o sentido panorâmico que a nossa própria vida encerra. O problema desta miopia está, em última análise, em que um olhar fragmentado tende a gerar um mundo, também ele, fragmentado.
Colligite fragmenta! É a ordem de Jesus: «Recolhei os fragmentos que sobraram, para que nada se perca» (Jo 6, 12). Ordem também, por certo, a estender à qualidade do nosso olhar. É sabido como a metáfora da visão é de longa tradição. Recuo ao século XII, a Ricardo de São Victor, para evocar o tríplice olhar de que falava (aliás, perspectivas semelhantes podem ser encontradas no oriente): o olhar da carne, do âmbito dos sentidos; o olhar da razão, que remete para a reflexão; e o olhar do espírito, aquele que envolve a experiência de Deus na nossa observação da vida. Talvez o anotado enviesamento da visão, que aqui se chamou de miopia, tenha na cegueira deste olhar espiritual sobre as realidades comezinhas da vida deste nosso mundo uma sua razão. Ou pelo menos, não será que o exercício deste olhar – capaz de reconhecer nos eventos algo que está para lá deles – nos ajudaria a olhar a vida como um todo harmónico e não tanto como sucessão desconexa de coisas várias? Este terceiro olhar, na verdade, é panorâmico, simbólico, conjuntivo, capaz de convocar para um diálogo com sentido realidades que à partida parecem não se falar. Assim, pelo menos, o percebemos nos místicos, mas também o reconhecemos em artistas. Talvez seja disto que fale Jesus e que este mundo silenciosamente nos peça.
pe.alexandre.palma@gmail.com