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Uma ética partilhada
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Dedico este texto à memória de D. Tomaz da Silva Nunes, um grande amigo, com quem tive o gosto de trabalhar nos domínios da Educação e do Património Cultural. Era um homem de fé, que jamais poderei esquecer no seu fantástico exemplo. Ao falar de um livro que segue muitas das preocupações de D. Tomaz, julgo ser este um apelo ao testemunho e à experiência de um grande amigo que deixa uma enorme saudade.
“Para uma Ética Partilhada” (Tradução de Artur Morão, Pedra Angular, 2009) é uma actual e belíssima reflexão sobre o mundo contemporâneo da autoria de Enzo Bianchi (n. 1943), um monge com uma importante intervenção ecuménica, preocupado em lançar de pontes em diversas direcções, no sentido dos cristãos e dos não cristãos, de diversas proveniências. Fundou em 1965 a Comunidade Monástica de Bose, no dia em que o Concílio Vaticano II encerrou os seus trabalhos. Bianchi tem-se empenhado na difusão de uma espiritualidade renovada, fortemente enraizada num diálogo fecundo, tantas vezes surpreendente, entre a tradição e modernidade. É útil recordar a citação de uma carta a Diogneto (século II), em que os cristãos aparecem definidos deste modo: “vivem na sua pátria, mas como forasteiros; participam de tudo como cidadãos, mas separam-se de tudo como estrangeiros. Moram na terra, mas têm a sua cidadania no céu”. Está em causa uma cidadania espiritual, designada como politeuma, palavra grega que significa conversação e conversa com Deus, mas também compromisso com os outros. Esta conversa com Deus e com os outros é a chave de uma espiritualidade aberta, serena, respeitadora das diferenças e criadora.
A fé precisa da razão para não cair no paganismo, mas exige a partilha de responsabilidades na cidade das pessoas, a polis. Cristãos e não cristãos têm, deste modo, de se perguntar em comum – quem é a pessoa humana? A luta pela humanização contra a barbárie tem de mobilizar todos. E o escritor tem-se empenhado activamente nessa missão de abertura e de partilha – para além das fronteiras dos católicos e dos cristãos. A laicidade tem de ser entendida de forma saudável. O Estado deve ser laico, a sociedade é plural e o fenómeno religioso tem de ser aceite pelos outros no espaço público. Daí que os poderes públicos devam defender activamente a liberdade de consciência para todos, devam empenhar-se na coexistência pacífica entre todos, opondo-se a toda a violência que se acoberta das convicções religiosas.
E se há sempre um pólo político e um pólo profético, como no-lo ensinaram Péguy, Maritain e Mounier - importa perceber a força do espírito: “a Igreja e as figuras eclesiais podem dizer uma palavra só a nível profético, pré-económico, pré-político, pré-jurídico, mas não devem sugerir soluções técnicas, porque isso incumbe aos homens políticos”. Não há política cristã, mas cristãos na vida política. “Cada cristão é remetido para a sua responsabilidade de cidadão e para a sua eventual inserção política, a fim de actuar segundo a inspiração do evangelho: as maneiras e as soluções técnicas para traduzir estas inspirações residem no âmbito da política, da economia, do direito e, enquanto tais, recaem sobre a responsabilidade do indivíduo crente-cidadão”. Assim se exige o compromisso, percebendo-se que “nenhum partido pode dizer que é o único depositário da mensagem cristã numa sociedade pluralista animada por vários projectos, os quais só poderão extrair benefícios de um confronto sério com a ‘diferença cristã’ tornada eloquente por católicos responsáveis e empenhados”.
Os cristãos são chamados à responsabilidade na polis, mas nunca poderão reivindicar a virtude apenas por serem cristãos. Daí as cautelas postas na “Gaudium et Spes”. Cristo não foi chefe político e não o quis ser, mas não afasta os seus discípulos do compromisso com a sociedade e os outros. Lembremo-nos de Giorgio La Pira, que foi síndaco de Florença, mas nunca renunciou a combater a acomodação, apelando à responsabilidade ética, profética e pré-política. Bianchi fala, por isso, de um “justo uso político da fé”, havendo um dever da Igreja se fazer ouvir. Para tanto tem de encontrar tempos e modos para uma intervenção autorizada. Trata-se de usar uma linguagem política “não banal nem arrogante, mas passível de ser escutada também por quem não partilha a fé que a gera”. “O espírito do homem é demasiado importante para ser deixado nas mãos de fanáticos e de intolerantes ou de espiritualidades que estão na moda. Sem dúvida, cada religião alimenta-se de espiritualidade, mas há lugar também a uma espiritualidade sem religião, sem Deus”. Daí que “o cristianismo precise de testemunhos, não de depoimentos”.