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Pedro Vaz Patto
Islamofobia
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Suscitou a minha particular atenção a afirmação do xeique David Munir sobre a hostilidade aos muçulmanos (a “islamofobia”) em Portugal, um fenómeno que ele durante muito tempo considerava irrelevante entre nós, mas que deixou de o ser ultimamente. Ele próprio dele foi vítima, quando foi insultado numa cerimónia em que sempre participou desde há muitos anos. Também se leem notícia de oposição à construção de mesquitas sem motivos válidos, apenas porque se trata de um local de culto islâmico (uma incompreensível limitação da liberdade religiosa).
Esse fenómeno de hostilidade ao Islão reflete um preconceito que associa necessariamente essa religião ao fundamentalismo intolerante, ou mesmo à violência terrorista. Há quem invoque a nossa identidade cultural de matriz cristã, forjada na oposição ao Islão. Há quem recorde a perseguição de que são vítimas cristãos em países de maioria muçulmana.
O que posso, porém, atestar, dos contactos que vou tendo no âmbito da Comissão de Liberdade Religiosa (de que sou membro em representação da Igreja católica e de que são também membros representantes da comunidades muçulmanas sunita e ismaelita) e no âmbito das iniciativas de diálogo inter-religioso em que tenho participado, é que as comunidade muçulmanas portuguesas e seus representantes rejeitam em absoluto uma versão do Islão, que consideram deturpada, associada à intolerância e, mais ainda, à violência terrorista, respeitam a liberdade religiosa e têm incentivado a plena integração dos seus imigrantes na sociedade portuguesa. Para que assim continuem, é bom que os atuais representantes dessas comunidades sejam apoiados nessa sua postura e nessa sua tarefa, e não hostilizados, para que não nasçam comunidades fechadas (autênticos guetos) com os novos imigrantes.
A nossa tradição cristã não pode reduzir-se a uma simples marca identitária como outra qualquer, não tem que ser afirmada (como foi no passado) em oposição a outras pessoas e povos. A sua afirmação passa pela coerência do Evangelho, que leva a amar a todos sem distinção. Retive uma frase recente de um sacerdote italiano responsável da Fundação Migrantes: o verdadeiro perigo de descristianização vem dos cristãos que não dão um testemunho coerente, também a propósito do acolhimento de imigrantes.
Não podemos ignorar ou esquecer as perseguições aos cristãos em nome de uma suposta versão do Islão (como casos recentes ocorridos na Nigéria e na Síria). Mas tal não significa atribuir a todos os muçulmanos alguma responsabilidade a esse respeito. Ou limitar a liberdade religiosa dos muçulmanos em países de tradição cristã como resposta à limitação da limitação da liberdade dos cristãos em países de tradição muçulmana. Afirmou o Papa Francisco na encíclica Fratelli tutti (n. 272): «Como cristãos, pedimos que, nos países onde somos minoria, nos seja garantida a liberdade, tal como nós a favorecemos para aqueles que não são cristãos onde eles são minoria».
Essa encíclica, sobre a fraternidade universal, vem na linha da chamada “Declaração de Abu Dhabi”, um Documento sobre a Fraternidade em prol da Paz Mundial e da Convivência Comum[1] assinado pelo Papa Francisco e pelo Grande Imã Al- Tayeb, influente autoridade do Islão sunita.
Hoje, mais do que nunca, a globalização e os fluxos migratórios são fenómenos incontornáveis que colocam lado a lado, inevitavelmente, pessoas de religião cristã e de religião islâmica, as duas religiões com maior número de crentes (pelo menos nominalmente) em todo o mundo. Tudo o que possa favorecer a construção de pontes entre elas (rejeitando, de igual modo, a “islamofobia” e a “cristianofobia”) só pode favorecer a paz e a harmonia das nossas sociedades europeias e do mundo em geral.
É, precisamente, por isso que o referido Documento sobre a Fraternidade em prol da Paz Mundial e da Convivência Comum, é tão importante. A partir dele, pode gerar-se uma aliança entre cristãos e muçulmanos que acreditam na paz, na fraternidade universal e na liberdade religiosa, rejeitando qualquer instrumentalização da religião para justificar a violência. Ele serve até de fundamento para condenar a perseguição aos cristãos em nome do Islão.
Esse documento começa por afirmar: «A fé leva o crente a ver no outro um irmão que se deve apoiar e amar. Da fé em Deus, que criou o universo, as criaturas e todos os seres humanos – iguais pela Sua Misericórdia –, o crente é chamado a expressar esta fraternidade humana, salvaguardando a criação e todo o universo e apoiando todas as pessoas, especialmente as mais necessitadas e pobres.»
E afirma a respeito da relação entre a religião e a violência: «(…) as religiões nunca incitam à guerra e não solicitam sentimentos de ódio, hostilidade, extremismo, nem convidam à violência ou ao derramamento de sangue. Estas calamidades são fruto de desvio dos ensinamentos religiosos, do uso político das religiões e também das interpretações de grupos de homens de religião que abusaram – nalgumas fases da história – da influência do sentimento religioso sobre os corações dos homens para os levar à realização daquilo que não tem nada a ver com a verdade da religião, para alcançar fins políticos e económicos mundanos e míopes. Por isso, pedimos a todos que cessem de instrumentalizar as religiões para incitar ao ódio, à violência, ao extremismo e ao fanatismo cego e deixem de usar o nome de Deus para justificar atos de homicídio, de exílio, de terrorismo e de opressão. Pedimo-lo pela nossa fé comum em Deus, que não criou os homens para ser assassinados ou lutar uns com os outros, nem para ser torturados ou humilhados na sua vida e na sua existência. Com efeito Deus, o Todo-Poderoso, não precisa de ser defendido por ninguém e não quer que o Seu nome seja usado para aterrorizar as pessoas.»
Este Documento sobre a Fraternidade em prol da Paz Mundial e da Convivência Comum é uma eloquente resposta à tese da inevitabilidade do conflito de civilizações. Mostra que a história conflitual do passado não tem necessariamente de repetir-se no futuro.
E é também uma eloquente resposta à tese de que as religiões são necessariamente um fator de divisão, conflito e até violência. Que tenha sido assim em muitas ocasiões, por terem sido incorretamente interpretadas ou por terem sido abusivamente instrumentalizadas para fins que lhes são alheios, não significa que tenha de ser necessariamente assim.
Pedro Vaz Patto [1] Uma versão portuguesa do documento pode ser consultada em https://www.vatican.va/content/francesco/pt/travels/2019/outside/documents/papa-francesco_20190204_documento-fratellanza-umana.html