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P. Gonçalo Portocarrero de Almada
‘Vem Ver’: um novo Pentecostes

 

Os movimentos não são anti-Igreja, não existem à margem da hierarquia, nem são um contra-poder, mas expressão da riqueza e diversidade eclesial.

 

Nos dias 7 e 8 de Junho, em Roma, teve lugar o Jubileu dos Movimentos e Associações, com a presença do Papa Leão XIV. No último dia do mês de Maio, festa da Visitação de Nossa Senhora a sua prima Santa Isabel, ocorreu no Jardim do Estoril o “Vem Ver”, a celebração do Jubileu na Igreja de Lisboa.

Uma gozosa realidade eclesial do final do segundo e princípios do terceiro milénios da era cristã é a abundância de Movimentos que, na multiplicidade dos seus carismas, oferecem aos leigos novos caminhos de santificação pessoal e de apostolado.

Depois do Concílio Vaticano II, muitas instituições religiosas sofreram um acentuado declínio, não apenas pela saída de muitos dos seus membros, mas também pela falta de vocações. A actualização, ou seja, o aggiornamento proposto pelo Concílio, significou, para algumas instituições eclesiais, uma grave crise, não só pela perda da sua identidade religiosa, nomeadamente pelo abandono do hábito, mas também por um tipo de vida secularizada que, em muitos casos, redundou na mundanização dessas instituições.

Foram excepção à regra do esmorecimento da vida religiosa algumas novas fundações, como a das Missionárias da Caridade, da Santa Teresa de Calcutá. Esta religiosa, que foi Prémio Nobel da Paz, sentiu um chamamento de Deus para se dedicar a um apostolado muito específico e exigente: o de cuidar dos mais pobres dos pobres. Este carisma não era absolutamente original, pois a Igreja católica sempre manifestou predileção pelos mais desfavorecidos – recorde-se, a este propósito, as Irmãzinhas dos Pobres e as Conferências de São Vicente de Paulo –, mas Teresa de Calcutá deu um novo impulso a este apostolado que, em pouco tempo, se expandiu por todo o mundo.

O século XX foi pródigo no que respeita aos novos Movimentos. Depois de um gradual definhamento da Acção Católica, que pretendia ser um apostolado laical dirigido pela hierarquia, em ordem à sua acção concertada no mundo, surgiram várias entidades que, de alguma forma, concretizaram o conciliar chamamento universal à santidade, como plenitude da vida cristã, e ao apostolado, já não como meros instrumentos da hierarquia, mas numa perspectiva mais autónoma e laical. Com efeito, Movimentos como os Cursilhos de Cristandade, que propõem uma enérgica pedagogia da conversão pessoal, seguida depois pelas escolas de comunidade; a Comunhão e Libertação, que forma leigos aptos para a intervenção pública; ou as Equipas de Nossa Senhora, centradas no acompanhamento pastoral dos casais e das famílias, obedecem a uma orgânica e dinâmica essencialmente laicais.

Enquanto as Ordens terceiras se caracterizam por propor aos leigos uma forma mitigada do seu carisma religioso, os Movimentos tendem à inserção dos leigos no mundo e na Igreja: já não se trata de ser cristão, apesar de viver no mundo, mas de ser cristão no mundo, santificando os próprios deveres pessoais, familiares e profissionais. Neste sentido, o ‘desprezo pelo mundo’, que é característico da vida religiosa, foi substituído pelo empenho na sua transformação, em ordem à sua perfeição intrínseca e, principalmente, à sua cristianização. Um mundo melhor não é apenas um mundo mais evoluído tecnicamente, mas, sobretudo, um mundo mais humano e mais cristão.

Como sempre acontece quando surge na Igreja algum novo carisma, a reação institucional foi de reserva e, por vezes, de aberta contradição. De facto, quando surgiram as ordens mendicantes, um cónego de Paris chegou a dizer que eram o anticristo, pois não concebia que os religiosos vivessem da mendicidade e, em vez de estarem fechados num convento, como até então se fazia, andassem pelas povoações a pregar o Evangelho. Inácio de Loiola fundou, em 1534, um instituto que pretendia ser uma espécie de tropa de elite ao serviço do Papa e da Igreja, mas, não obstante os excelentes resultados do trabalho apostólico da Companhia de Jesus, a mesma foi extinta em 1773, sendo reabilitada em 1814.

Os Movimentos também tiveram de passar por algumas dificuldades até ao seu cabal reconhecimento pela hierarquia eclesial. Um exemplo: as Equipas de Nossa Senhora começaram no Porto, em 1957, porque em Lisboa, onde pontificava o Cardeal Cerejeira, entendia-se que o apostolado eclesial devia ser exclusivamente diocesano e, por isso, só foram aprovadas dois anos depois, em 1959. Mais grave foi a sanção imposta pelo Santo Ofício ao Padre José Kentenich, religioso palotino que fundou o Movimento de Schoenstatt. Em 1951 foi proibido de qualquer contacto com o seu Movimento e enviado, como pároco, para os Estados Unidos da América, de onde só pôde regressar em 1965, para finalmente se ocupar da sua apostólica fundação, que está na origem da Missão País, que todos os anos mobiliza, para trabalhos de âmbito social, milhares de universitários portugueses.

Se, com efeito, houve tensões entre os Movimentos e a hierarquia da Igreja, sobretudo devido às incompreensões dos sectores mais tradicionais e clericais, prevaleceu a lógica da unidade na diversidade: a multiplicidade dos carismas não obsta à unidade da Igreja universal, nem local. A estrutura hierárquica – Papa, bispos, padres e diáconos – não esgota a realidade eclesial que, portanto, precisa de outros canais de realização e de ação. Os Movimentos não são anti-Igreja, não existem à margem da hierarquia, nem são um contrapoder, como alguns zelosos guardiões do templo temiam. São, pelo contrário, à imagem e semelhança do Pentecostes, uma feliz expressão da riqueza e da diversidade eclesial, que São Paulo comparava à multiplicidade dos órgãos na harmonia do corpo humano. Ou seja, a unidade eclesial não se confunde com uniformismo pastoral: todas as instituições aprovadas pela Igreja são úteis à sua missão universal, cada qual de acordo com o seu próprio carisma e o seu estilo evangelizador.

Se é verdade que tem de haver, por parte dos pastores, uma acrescida capacidade de compreensão da legítima diversidade eclesial, também é certo que os Movimentos devem contribuir para a coesão da Igreja diocesana e universal: o seu carisma, que pode ter expressões próprias, até na liturgia, não pode ser vivido com total independência da estrutura hierárquica, sob pena da sua exclusão de facto da comunidade cristã, ou seja, da sua ‘excomunhão’.

Duas excelentes expressões desta união na diversidade foram as celebrações do Jubileu na Igreja de Lisboa, no passado dia 31 de Maio, e do Jubileu dos Movimentos e Associações, em Roma, a 7 e 8 de Junho. Estas experiências de diversidade na única fé e missão apostólica não só intensificam os laços de coesão da Igreja universal e diocesana com os diversos Movimentos, como também reforçam, para os membros destes grupos, o sentido de pertença à Igreja local e mundial. Os Movimentos, embora desenvolvendo a sua própria espiritualidade e o seu apostolado específico, não podem cair na autorreferencialidade, que contradiz o carácter católico da Igreja, ou seja, a sua universalidade. Pelo contrário, os Movimentos são o exemplo de como, na Igreja do terceiro milénio, o Espírito Santo promove, como no Pentecostes, uma diversidade de apostolados que, na comunhão eclesial, expressam a unidade da fé.

 

P. Gonçalo Portocarrero de Almada