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P. Gonçalo Portocarrero de Almada
O respeito divino pela liberdade humana

“E, contudo, não é precisamente este o estilo divino? Não se impor pela força exterior, mas dar liberdade, conceder e suscitar amor.”

 

Muito embora a verdade sobre a ressurreição de Jesus Cristo seja insistentemente afirmada pelos Evangelhos, os testemunhos em que se apoia uma tal proclamação parecem carecer de valor, porque os mesmos que dão fé da ressurreição de Cristo são também os que, depois de ressuscitado, o não reconheceram imediatamente. Assim sendo, poderiam levar a crer que a ressurreição não foi uma constatação empírica, mas uma elaboração intelectual, que teria valor doutrinal, mas não factual, nem científico. Ora, se assim fosse, a fé cristã ruiria pela sua base pois, como disse São Paulo aos coríntios, “se Cristo não ressuscitou, é vã a vossa fé e permaneceis ainda nos vossos pecados”, porque se “temos esperança em Cristo apenas para esta vida, somos os mais miseráveis de todos os homens” (1Cr 15, 17.19).

Da dificuldade dos discípulos em identificar Cristo ressuscitado deu também conta o Papa Bento XVI, aliás Joseph Ratzinger, no seu magistral Jesus de Nazaré: “Antes de mais impressiona o facto de os discípulos, num primeiro momento, não O reconhecerem. Acontece isto não só aos discípulos de Emaús, mas também a Maria de Magdala e depois uma vez mais junto do mar de Tiberíades: ‘Ao romper do dia, Jesus apresentou-se na margem, mas os discípulos não sabiam que era ele’ (Jo 21, 4).” É verdade que, graças à abundantíssima e inexplicável pesca, aqueles discípulos chegam à conclusão de que o seu interlocutor é Jesus, mas não por aquilo que vêem ou ouvem. Com efeito, não o reconheceram quando o viram na margem, nem quando o ouviram dizer para lançarem a rede para o lado direito da barca. Por isso, o seu conhecimento de que era Jesus não procedia dos seus sentidos, nem da sua razão humana, mas de uma graça interior que lhes tinha sido concedida e, em virtude da qual, podiam constatar o que, de outra forma, não poderiam saber. Como escreveu Bento XVI, “sabiam-no a partir de dentro, não devido ao seu aspecto, nem graças ao olhar perscrutador deles.”

São recorrentes os paradoxos associados às várias aparições do ressuscitado porque, se por um lado parecem impor a evidência da sua realidade corpórea, por outro, sugerem um tipo de presença imaterial, ou gloriosa, oposta à típica opacidade da matéria. “A esta dialéctica do reconhecer e do não reconhecer corresponde a modalidade da aparição. Jesus entra com as portas fechadas, apresenta-se subitamente no meio deles. E do mesmo modo desaparece repentinamente, como no fim do encontro de Emaús. É plenamente corpóreo; e todavia não está ligado às leis da corporeidade, às leis do espaço e do tempo. Nesta dialéctica surpreendente entre identidade e alteridade, entre verdadeira corporeidade e liberdade em relação aos vínculos do corpo, manifesta-se a essência peculiar, misteriosa da nova existência do Ressuscitado. Com feito, são válidas as duas coisas: Ele é o mesmo, ou seja, Homem em carne e osso, e ele é também o Novo, Aquele que entrou num género diverso de existência.”

A não unanimidade quanto à evidência da sua ressurreição, devido às dúvidas recorrentes das testemunhas oculares, bem como a aparente imaterialidade da condição do ressuscitado, que entra em casa sem necessidade de abrir as portas, aparece e desaparece misteriosamente, etc., poderiam levar à dupla conclusão de que esses relatos não seriam históricos e, portanto, o que se pretendia apresentar, como um facto, mais não seria do que uma conjectura dos apóstolos, necessária para a fundamentação da doutrina que deveriam pregar no mundo inteiro.

Curiosamente, a partir deste paradoxo, Bento XVI chega à conclusão contrária, ou seja, a de que se prova assim a veracidade dos relatos bíblicos e, portanto, a consistência empírica, ou factual, do que nos revelam. É, no seu sugestivo modo de dizer, uma narração desajeitada que, precisamente por isso, faz emergir a verdade dos factos que revela: “Esta dialéctica, que faz parte da existência do Ressuscitado, é apresentada nas narrações de modo verdadeiramente desajeitado, mas é precisamente assim que emerge a sua veracidade. Se a ressurreição tivesse sido inventada, toda a insistência se concentraria na plena corporeidade, no reconhecimento imediato e, além disso, ter-se-ia idealizado talvez um poder particular como sinal distintivo do Ressuscitado. Mas, na contradição do experimentado que caracteriza todos os textos, no conjunto misterioso de alteridade e identidade, reflecte-se um modo novo de encontro que apologeticamente aparece como desconcertante, mas por isso mesmo se revela ainda mais como descrição autêntica da experiência feita.”

Daqui emerge a dupla realidade que a fé cristã confessa: a humanidade de Jesus e a sua divindade. Ambas foram, por certo, testemunhadas pelo incrédulo Tomé, quando o ressuscitado o convidou a tocar com as suas mãos as chagas que comprovavam que ele é o mesmo que foi crucificado. Esta afirmação não é o fruto de uma elaborada teoria, de que decerto os apóstolos, dada a sua condição de “homens iletrados e plebeus” (At 4,13), não seriam capazes, mas a conclusão que decorre de uma constatação empírica que é, na realidade, uma evidência: “o que existia desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com os nossos olhos, o que contemplámos e as nossas mãos tocaram relativamente ao Verbo da Vida […], o que nós vimos e ouvimos isso vos anunciamos” (1Jo 1, 1.3).

Como escreveu Bento XVI, “a novidade da ‘teofania’ do Ressuscitado consiste no facto de que Jesus é verdadeiramente Homem: como Homem, ele sofreu e morreu; agora vive de modo novo na dimensão do Deus vivo; aparece como verdadeiro Homem, mas a partir de Deus; e ele mesmo é Deus.”

Mas, porque não quis Deus que a ressurreição fosse ainda mais evidente, não apenas para o reduzido grupo dos seus fiéis, que dificilmente seriam tidos por testemunhas objectivas e imparciais, mas também para todo o mundo, se esta mensagem é universal e necessária para a salvação?! Se o tivesse feito, seria óbvia, para todos, não apenas a sua divindade, mas também a sobrenaturalidade da sua Igreja!

A resposta, na sempre erudita e inspiradora palavra de Bento XVI, prende-se com o respeito divino pela liberdade humana. “É próprio do mistério de Deus agir deste modo suave. (…) Padece e morre e, como Ressuscitado, quer chegar à humanidade apenas através da fé dos seus, aos quais Se manifesta. Sem cessar, ele bate suavemente às portas dos nossos corações e, se Lhas abrirmos, lentamente vai-nos tornando capazes de ‘ver’.

“E, contudo, não é precisamente este o estilo divino? Não se impor pela força exterior, mas dar liberdade, conceder e suscitar amor. E, pensando bem, o aparentemente mais pequenino não é o realmente grande? Porventura não irradia de Jesus um raio de luz que cresce ao longo dos séculos, um raio que não podia provir de nenhum simples ser humano, um raio mediante o qual entra verdadeiramente no mundo o esplendor da luz de Deus? Teria o anúncio dos apóstolos podido encontrar fé e edificar uma comunidade universal se não operasse neles a força da verdade?

“Se ouvirmos as testemunhas com coração atento e nos abrirmos aos sinais com que o Senhor não cessa de autenticar as suas testemunhas e de se atestar a Si mesmo, então saberemos que ele verdadeiramente ressuscitou; Ele é o Vivente. A Ele nos entregamos e sabemos que assim caminhamos pela estrada justa. Com Tomé, metamos a nossa mão no lado trespassado de Jesus e professemos: ‘Meu Senhor e meu Deus!’ (Jo 20, 28)”.

 

P. Gonçalo Portocarrero de Almada