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Pedro Vaz Patto
A geração dos telemóveis

Muito se tem falado dos efeitos que provoca o uso constante de telemóveis (na versão smartphone) e redes sociais pelas crianças e adolescentes de hoje. O livro do conceituado psicólogo social Jonatham Haidt A Geração Ansiosa (editado em Portugal pela Dom Quixote) aborda esta questão e tem tido grande difusão em muitos países. Faz-nos refletir…

O livro apresenta esse fenómeno como uma “grande reconfiguração” que atinge a chamada Geração Z (jovens nascidos na década de 2010). Essa “grande reconfiguração” traduz-se na passagem da infância baseada na brincadeira para a infância baseada no telemóvel. A essa transição liga-se o cuidado excessivo com a segurança física, que, no confronto com os riscos da brincadeira e os desafios da descoberta, limita a autonomia e o crescimento. Não se atende, porém, a outro tipo de riscos, bem mais graves, que resultam da navegação na internet e da frequência das redes sociais.

Às relações reais sucedem-se as relações virtuais. As primeiras são corpóreas, sincrónicas (ocorrem ao mesmo tempo), implicam principalmente interações de um-para-um ou de um-para-vários e surgem em comunidades com elevados padrões de inclusão e exclusão; por isso, as pessoas são fortemente motivadas a investir nelas. As segundas são incorpóreas, assíncronas (dão-se através de mensagens e comentários), envolvem principalmente interações de um-para-muitos e surgem em comunidades pouco exigentes quanto à inclusão e exclusão; por isso, duram pouco e são facilmente descartáveis. Esta mudança tem óbvias consequências.

Os quatro danos fundamentais provocados por esta “grande reconfiguração” são a privação social, a privação do sono, a atenção fragmentada e a dependência (com especial destaque para a dependência da pornografia).

O uso das redes sociais acentua o conformismo e a obsessão da comparação social. Afeta as raparigas porque mais propensas a laços de comunhão que vêm a verificar-se ilusórios e porque mais vulneráveis à agressividade relacional e ao assédio. Os rapazes, por seu turno, são mais vulneráveis à dependência de videojogos e pornografia.

Particularmente interessante e significativo, pareceu-me o que no livro se afirma a respeito da degradação espiritual fomentada por esta “grande reconfiguração”. Afirmações de um autor que se declara ateu…

Em todos os corações humanos existe um “buraco em forma de Deus”, muitas pessoas anseiam por um significado uma ligação e elevação espirituais Uma vida baseada nos telemóveis normalmente enche esse vazio com conteúdos triviais e degradantes.

Uma vida baseada nos telemóveis e redes sociais não favorece muitos dos comportamentos praticados por comunidades religiosas, algumas das quais, de acordo com investigadores como David DeSteno, já demonstraram ser benéficas para a felicidade, bem-estar, confiança e coesão do grupo, reduzindo a anomia e a solidão.

As redes sociais treinam as pessoas a pensar de forma contrária às tradições de sabedoria ancestral que abrem à transcendência e fomentam a comunhão: incentivam o egoísmo e o materialismo, a busca de glória quantificada em “gostos” e seguidores.

A maioria das religiões exorta-nos a ser menos críticos, mas as redes sociais encorajam-nos a proferir juízos sobre as outras pessoas a um ritmo inédito na história da humanidade. Aquelas aconselham-nos a ser lentos na cólera e rápidos no perdão, estas estimulam o contrário.

Em comentário a estas pertinentes observações de Jonathan Haidt, eu direi que estas inegáveis tendências não impedem um uso limitado e responsável destes meios que contrarie essas tendências. Como simples instrumentos, podem ser usados para bons fins, ainda que isso signifique ir “contra a corrente”.

Jonathan Haidt não se limita a diagnosticar uma realidade como se ela fosse irremediável. Apela a uma “ação coletiva para uma infância mais saudável”. Indica o que os governos, as empresas tecnológicas, as escolas e os pais podem fazer agora. De entre as suas propostas, contam-se a proibição de telemóveis nas escolas do ensino básico e a proibição de abertura de contas e cedência de dados pessoais por menores de dezasseis anos.

 

Pedro Vaz Patto