![]() |
Artigos |
|
Guilherme d'Oliveira Martins
O próximo é quem de nós precisa
|
![]() |
Dedico à memória de Monsenhor Weber Machado Pereira (1931-2025) a evocação da Páscoa de 2025, neste ano jubilar realizado sob o lema da Esperança. Era um amigo que constituiu sempre um exemplo de coragem e determinação, em prol dos pobres. Conhecemo-nos há trinta anos nos Açores, onde me convidou a falar sobre a Doutrina Social da Igreja e sua atualidade, e ainda há um ano voltámos a encontrar-nos em Ponta Delgada, ele sempre com o mesmo entusiasmo, a mesma coerência e uma extraordinária generosidade. Era natural da Freguesia de Água Retorta (S. Miguel), estudou no Seminário Episcopal de Angra do Heroísmo, tendo sido ordenado em 1958, em São João de Latrão, em Roma. Licenciou-se em Teologia Sistemática na Pontifícia Universidade Gregoriana. Mais tarde, licenciou-se em matemática na Universidade de Lisboa, em 1964. Foi professor do Seminário Episcopal de Angra e do Seminário Colégio do Senhor Santo Cristo em Ponta Delgada. Foi nomeado Monsenhor em Janeiro de 2006. Após deixar a lecionação dedicou-se ao serviço da Cáritas de São Miguel, da qual foi o seu rosto mais visível. Fui testemunha da sua entrega total. Visitámos juntos Rabo de Peixe, porque para si interessavam pouco as teorias, importava sim a ação. O próximo era quem precisava de nós e esse era o modo de levar Jesus onde era necessário. Denunciar, Formar e Amar formavam o seu lema, sempre presente no seu testemunho. O compromisso com os pobres era para si uma exigência nunca plenamente cumprida, uma vez que o desenvolvimento humano era uma prioridade absoluta em nome da dignidade.
Em sua homenagem recordo os 120 anos do nascimento de Emmanuel Mounier (1905-1950), o filósofo do compromisso, que tantas vezes invocámos como exemplo de ligação entre o ser e o agir. Sei que estaria de acordo comigo com esta recordação e com a referência à afirmação do pensador, por isso as faço: «Sinto um sofrimento cada vez mais vivo por ver o nosso cristianismo solidarizar-se com o que designarei um pouco mais tarde de “desordem estabelecida” e de vontade de fazer rotura». Numa carta a Jean-Marie Domenach afirmava: «o acontecimento será o nosso mestre interior». De facto, Mounier considerava-se essencialmente testemunha do seu tempo. E este testemunho põe a tónica na relação entre o pensamento e a história, o que é mais importante do que uma apreciação puramente conjuntural das tomadas de posição em face das circunstâncias. Estamos perante o valor da imperfeição como um sinal da ação humana, o que é muito mais importante do que a consideração de modelos ou receitas fechados. Se lermos os textos de Mounier (sobretudo depois de conhecer Landsberg) percebemos bem que correr riscos (o sujar as mãos) é fundamental para procurar a justiça animada pela verdade. Péguy ou Maritain falavam dos polos profético e político – E. Mounier e P.L. Landsberg procuram fazer do compromisso (engagement) a ligação entre o respeito da «eminente dignidade humana» e a realização das ações necessárias à justiça, à verdade e à dignidade, a partir dos «sinais dos tempos», de que falará João XXIII.
Mounier concebia a pessoa humana como superação de si-mesma - «ela é o movimento do ser para o ser». Os valores não são, assim, ideias gerais ou desenraizadas - «são fonte inesgotável e viva de determinações, exuberância, apelo irradiante: como tal revelam uma como que singularidade expansiva e uma proximidade com o ser pessoal, mais primitiva do que o seu deslizar para a generalidade». De facto, «o compromisso pode revestir diversas formas: é humano, ético, político, espiritual, segundo a dimensão da ação que domina. Mas nenhuma das formas pode ser pensada de modo totalmente independente por referência às outras». «A minha pessoa e em mim a presença e a unidade de uma vocação intemporal (…) chama a superar-me indefinidamente e opera, através da matéria que a refrata, uma unificação sempre imperfeita, sempre recomeçada, de elementos que em mim se agitam».
Se o compromisso e o acontecimento se tornaram centrais nesta reflexão, devemos ainda acrescentar a capacidade de fazer frente aos acontecimentos, a ideia de afrontamento: «a pessoa expõe-se, exprime-se, faz face a, é rosto». E a palavra grega mais próxima da noção de pessoa é «prosopon»: aquele que olha de frente, a máscara que identifica o ator no teatro grego. Ora, a partir da ideia de «afrontamento», chegamos áquilo que Unamuno designava por «agonia», a luta pessoal emancipadora, a partir da consideração dos valores espirituais. «A pessoa toma consciência de si própria, não no êxtase, mas na luta de força». Afinal, «o amor é luta; a vida é luta contra a morte; a vida espiritual é luta contra a inércia material e o sono vital». No fundo, alguém só atinge a plena maturidade, no momento em que «opta por fidelidades que valem mais do que a vida». Assim foi também o exemplo inesquecível de Monsenhor Weber Machado Pereira.
Guilherme d’Oliveira Martins