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P. Gonçalo Portocarrero de Almada
Bento XVI e os paradoxos da Páscoa
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As duas Páscoas, a judia e a cristã, são passagem: a primeira, da terra da escravidão para a terra prometida; e a segunda, da vida terrena para a vida eterna.
Na madrugada do primeiro dia da semana, algumas mulheres foram ao sepulcro onde Cristo tinha sido depositado. No entanto, “não acharam o corpo do Senhor Jesus. Estando elas perplexas com o caso, apareceram-lhes dois homens em trajes resplandecentes. Como estivessem amedrontadas e voltassem o rosto para o chão, eles disseram-lhes: ‘Porque buscais o Vivente entre os mortos? Não está aqui; ressuscitou! Lembrai-vos de como vos falou, quando ainda estava na Galileia, dizendo que o Filho do Homem tinha de ser entregue às mãos dos pecadores, ser crucificado e ressuscitar ao terceiro dia’.” (Lc 24, 3-7). Não foi por acaso que a paixão, morte e ressurreição de Jesus aconteceram por ocasião da Páscoa judaica. Nesta festa, os judeus evocavam a milagrosa ‘passagem’ pelo Mar Vermelho, a caminho da terra prometida a que, no entanto, só chegariam depois de quarenta anos, tantos quantos os dias da Quaresma. O próprio Cristo celebrou, antecipadamente, a Páscoa judaica com os seus discípulos, seguindo depois para o Monte das Oliveiras, onde foi traído por Judas Iscariotes e teve início a sua paixão. A coincidência entre as duas Páscoas, a judia e a cristã, explica-se por uma óbvia analogia, porque ambas são passagem: a primeira, da terra da escravidão para a terra prometida; e a segunda, da vida terrena para a vida eterna. Por este motivo, os anjos que interpelam as mulheres que vão ao sepulcro, na manhã do primeiro dia da semana, perguntam-lhes: “‘Porque buscais o Vivente entre os mortos?” (Lc 24, 5). A propósito da vida eterna, Bento XVI referiu um paradoxo muito comum: “Hoje, muitas pessoas rejeitam a fé, talvez simplesmente porque a vida eterna não lhes parece uma coisa desejável. Não querem de modo algum a vida eterna, mas a presente; antes, a fé na vida eterna parece, para tal fim, um obstáculo. Continuar a viver eternamente – sem fim – parece mais uma condenação do que um dom. Certamente, a morte querer-se-ia adiá-la o mais possível. Mas viver sempre, sem um termo, acabaria por ser fastidioso e, em última análise, insuportável.” (Spe salvi, nº 10). De facto, é geral o apego pela vida terrena, até ao ponto de se considerar que uma longa vida é uma bênção, que se quer para si próprio e que se deseja para quem se ama. Mas uma vida sem fim seria detestável: as sucessivas reencarnações, que as religiões orientais pressupõem, têm um carácter penitencial, de necessária expiação para alcançar a perfeição indispensável para ascender ao estado de perfeita felicidade. A propósito deste paradoxo – não querer morrer, mas também não desejar viver eternamente – escreveu o anterior Papa: “Obviamente há uma contradição na nossa atitude, que evoca um conflito interior da nossa mesma existência. Por um lado, não queremos morrer, sobretudo quem nos ama não quer que morramos. Mas, por outro, também não desejamos continuar a existir ilimitadamente (…). Então, o que é que queremos na realidade? Este paradoxo da nossa própria conduta suscita uma questão mais profunda: o que é, na verdade, a ‘vida’?” (Spe salvi, nº 11). A este propósito, é curioso notar que, ante uma existência particularmente penosa, é comum dizer-se que ‘não é vida’, ou mesmo que ‘não é vida para ninguém’. Ou seja, diz-se que é uma existência que não merece ser vivida, dadas as circunstâncias dolorosas que frustram o seu sentido e valor. Uma vida assim até faria desejável a morte, como único fim possível para um sofrimento intolerável. Santo Ambrósio de Milão, na elegia pelo defunto Sátiro, explicou em que sentido a morte é a desejável libertação de uma vida execrável: “Sem dúvida, a morte não fazia parte da natureza, mas tornou-se natural; porque Deus não instituiu a morte ao princípio, mas deu-a como remédio. Condenada pelo pecado a um trabalho contínuo e a lamentações insuportáveis, a vida da humanidade começou a ser miserável. Deus teve de pôr fim a estes males, para que a morte restituísse o que a vida tinha perdido. Com efeito, a imortalidade seria mais penosa do que benéfica, se não fosse promovida pela graça’.” (De excessu fratris sui Satyri, II, 47). Se é verdade que, em momentos mais aziagos, somos levados a pensar que uma tal existência ‘não é vida’, também é certo que, quando tudo corre bem, reconhecemos o que a vida pode ser também uma grande satisfação. Santo “Agostinho, na sua extensa carta sobre a oração, dirigida a Proba – uma viúva romana que era mãe de três cônsules –, escreve: no fundo, queremos uma só coisa, ‘a vida bem-aventurada’, a vida que é simplesmente vida, pura ‘felicidade’.” (Spe salvi, nº 11). É esta vida que se chama vida eterna e que foi conquistada e estreada por Cristo, pela sua gloriosa ressurreição. Ao contrário da filha de Jairo, do filho da viúva de Naim e de Lázaro, que ressuscitaram para a vida anterior e mais tarde voltaram a morrer, a ressurreição de Jesus não é um mero regresso à vida que antes tinha, mas a inauguração, na sua própria carne, agora gloriosa, de uma nova vida, a vida eterna, que é pura felicidade. Mas, uma nova vida, ao ser eterna, não pode ser também mortificante?! É este o segundo paradoxo pascal de Joseph Ratzinger: “A palavra ‘vida eterna’ procura dar um nome a esta desconhecida realidade conhecida. Necessariamente é uma expressão insuficiente, que cria confusão. Com efeito, ‘eterno’ suscita em nós a ideia do interminável, e isto nos amedronta; ‘vida’ faz-nos pensar na existência por nós conhecida, que amamos e não queremos perder, mas que, frequentemente, nos reserva mais canseiras que satisfações, de tal maneira que se por um lado a desejamos, por outro não a queremos.” (Spe salvi, nº 12). De facto, a eternidade é sedutora – até as canções populares enaltecem um amor para sempre! – mas o que é interminável se afigura medonho e detestável. Uma felicidade sem fim atrai, mas o mesmo já não se pode dizer da eternidade em si mesma, pois parece ser não apenas cansativa como monótona, sobretudo se entendida como a infinita permanência na mesma situação. Como sobre a realidade dessa existência para além da morte, é mais o que ignoramos do que o que sabemos, Santo Agostinho reconhece, humildemente, uma “douta ignorância”, pois desconhecemos o que seja, exactamente, a vida eterna, embora saibamos, com absoluta certeza, que existe e que nos atrai: “Há em nós, por assim dizer, uma douta ignorância. Não sabemos realmente o que queremos, não conhecemos esta ‘vida verdadeira’; e, no entanto, sabemos que deve existir algo que não conhecemos e para isso nos sentimos impelidos.” (Ep. 130 Ad Probam, 14, 25 – 15, 28). Por sua vez, Bento XVI usa uma expressão equivalente – “esta desconhecida realidade conhecida” (Spe salvi, 12) – não menos paradoxal. Tende-se a pensar a vida eterna segundo os parâmetros do espaço e do tempo e, por isso, entende-se essa realidade como um lugar, que não é, e como um tempo sem fim, que também não é, porque é o seu contrário, ou seja, a ausência do tempo. Com efeito, como escreveu Bento XVI, “a única possibilidade que temos é procurar sair, com o pensamento, da temporalidade de que somos prisioneiros e, de alguma forma, conjecturar que a eternidade não seja uma sucessão contínua de dias do calendário, mas algo parecido com o instante repleto de satisfação, onde a totalidade nos abraça e nós abraçamos a totalidade. Seria o instante de mergulhar no oceano do amor infinito, no qual o tempo – o antes e o depois – já não existe. Podemos somente procurar pensar que este instante é a vida em sentido pleno, um incessante mergulhar na vastidão do ser, ao mesmo tempo que ficamos simplesmente inundados pela alegria.” (Spe salvi, 12). Santa Páscoa da ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo! P. Gonçalo Portocarrero de Almada