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Pedro Vaz Patto
Uma paz justa?
Das várias vezes em que tive ocasião de conhecer e ouvir colegas da comissão Justiça e Paz ucraniana, impressionou-me a intransigência com que defendiam a necessidade de vencer a guerra contra o invasor russo incondicionalmente, «custe o que custar», sem negociações ou cedências, porque estas representariam sempre um “prémio para o infrator”. Salientavam eles também que os planos invasores de Putin não se restringem aos territórios já ocupados, estendem-se a todo o território ucraniano, que, confessadamente, considera parte da Rússia (para não falar num plano mais vasto de restabelecimento da antiga União Soviética, cujo desmembramento já afirmou lamentar como a maior tragédia dos tempos mais recentes).

Afirmavam também esses meus colegas ucranianos a exigência do julgamento e punição de crimes de guerra e contra a humanidade praticados por militares russos, como os massacres praticados em Bucha e noutros locais. A propósito, recebi há dias o anúncio de um colóquio a realizar na Universidade Católica de Lviv sobre a teodiceia depois do massacre de Bucha, isto é, como conciliar a fé em Deus-Amor com a realidade dessa tragédia (do mesmo modo que se tem refletido na fé em Deus-Amor depois do Holocausto judaico e dos massacres de Auschwitz).

Devo dizer que não me identificava inteiramente com essa intransigência (que, além do mais, levava a críticas severas aos apelos do Papa Francisco à busca incessante da paz através da diplomacia). Reconhecia a legítima defesa ucraniana perante a agressão russa, na linha do que afirma o Catecismo da Igreja Católica (n.º 2308). Mas também a importância de não desistir de alcançar a paz não necessariamente através de uma vitória incondicional (que se tornava cada vez mais utópica), mas de negociações e cedências que não teriam que representar necessariamente um “prémio para o infrator”. É também o Catecismo que afirma que condição da legitimidade de uma guerra é também a de que os males que acarreta (que se vão agravando com o seu prolongamento e com o uso de meios cada vez mais mortíferos) não sejam superiores aos males que pretende evitar (n.º 2309).

Todos concordávamos, porém que uma verdadeira paz há de ser uma paz justa e duradoura.

Assistimos agora a uma perspetiva de cessação desta guerra que dura há três anos. Tenho pensado muito no que sentirão hoje esses meus colegas ucranianos, sensação que certamente será a de quase todos os seus compatriotas. O fim dessa guerra, em si mesmo, é certamente de saudar. Mas eles também certamente pensarão que não se trata de uma paz justa. Pensarão que foram abandonados e traídos por um governo seu aliado, que a solidariedade para com eles em grande parte se esvaneceu e que poderão ter sido em vão todos os enormes sacrifícios até agora vividos pelo seu povo.

Desde logo porque (é assim, pelo menos, no momento em que escrevo estas linhas) as negociações da suposta paz decorrem sem a presença de qualquer representante do seu governo, decorrem entre o governo agressor e o governo que os abandonou e traiu (o qual não tem pejo em afirmar os seus propósitos de extorquir valiosos recursos minerais ucranianos como compensação pela ajuda prestada até agora – propósito que parece suplantar qualquer verdadeiro desejo de uma paz justa).

Nenhuma preocupação se nota em não premiar o infrator, que violou de forma flagrante o direito internacional e a Carta das Nações Unidas, ao desencadear uma guerra de agressão. Não é só o povo a Ucrânia que perde com isso, é a autoridade do direito internacional que fica em cheque. Qualquer potencial agressor pode esperar ser premiado como Putin.

Nenhuma preocupação se nota em evitar que Putin concretize, mais cedo ou mais tarde, o seu propósito de ocupar todo o território ucraniano. Já muitos observadores salientaram o exemplo histórico do acordo de Munique, que em 1938 reconheceu a ocupação alemã de uma parte do território da Checoslováquia: pensavam os contraentes que essa cedência evitaria o desencadear da guerra, mas ela teve o efeito contrário, precisamente porque se tratou de um “prémio ao infrator”.

A verdadeira paz não é apenas a ausência de guerra. Vem a propósito recordar o que na encíclica de São João XXIII se afirma sobre os pilares em que assenta a verdadeira paz e que são: a verdade, a justiça, a liberdade e a caridade. Sem esses pilares, não podemos falar numa paz autêntica.

E vem também a propósito o que afirma o Papa Francisco na encíclica Fratelli Tutti (no seu n.º 241) sobre o amor ao opressor (sim, porque o amor cristão não exclui o amor ao inimigo e o amor ao opressor). Mas amar o opressor não significa consentir que este continue a oprimir ou levá-lo a pensar que é aceitável o que faz; amar corretamente é procurar que ele deixe de oprimir, tirar-lhe o poder que não sabe usar e que o desfigura como ser humano; a justiça é guardar a dignidade da vítima, uma dignidade que lhe foi dada por Deus; o perdão não anula as necessidades da justiça, reclama-as.

É deste modo que se constrói uma paz justa, aquela paz justa a que tem direito o povo ucraniano, que continua a merecer, hoje como desde há três anos, a nossa solidariedade.

 

Pedro Vaz Patto