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P. Gonçalo Portocarrero de Almada
O grande drama dos ‘pequenos homicídios’
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“Pelos bem pensantes poderá parecer exagerado e inoportuno – ou até mesmo fastidioso – (…) o problema do respeito pela vida acabada de conceber e ainda por nascer.”
No 1.º de Janeiro, solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus, e Dia Mundial da Paz, o Papa Francisco pediu um “compromisso” global pela defesa da vida humana: “Apelo a um firme compromisso de promover o respeito pela dignidade da vida humana, desde a concepção até à morte natural, para que cada pessoa possa amar a sua vida e olhar para o futuro com esperança.”
Este chamamento é universal pois, como então disse o Santo Padre, “todos somos chamados a acolher este convite que brota do coração materno de Maria: proteger a vida, cuidar das vidas feridas, restituir a dignidade à vida de cada ser nascido de uma mulher é a base fundamental para construir uma civilização de paz”. Mas este apelo é particularmente pertinente no nosso país, onde a Assembleia da República se prepara para votar, em breve, uma proposta para alargar, de 10 para 12 semanas, o prazo do aborto legal.
A defesa da vida humana pelo Papa Francisco insere-se, na perfeição, na história cristã porque, “desde os seus primórdios, a tradição viva da Igreja – como testemunha a Didaké, o escrito cristão extra-bíblico mais antigo – reafirmou de modo categórico o mandamento ‘não matarás’. (…) Segundo o preceito da doutrina: (…) não matarás o embrião por meio do aborto, nem farás que morra o recém-nascido. (…) Este é o caminho da morte: (…) assassinam os seus filhos e pelo aborto fazem perecer criaturas de Deus” (João Paulo II, O Evangelho da Vida, 25-3-1995, nº 54).
O Concílio Vaticano II declarou que “são infames as seguintes coisas: tudo quanto se opõe à vida, como seja toda a espécie de homicídio, genocídio, aborto, eutanásia e suicídio voluntário” (Gaudium et spes, nº 27).
Também os dois imediatos antecessores do Papa Francisco foram particularmente assertivos nesta matéria. São João Paulo II declarou: “com a autoridade com que Cristo conferiu a Pedro e aos seus Sucessores, em comunhão com os Bispos da Igreja Católica, confirmo que a morte directa e voluntária de um ser humano inocente é sempre gravemente imoral” (O Evangelho da Vida, nº 57). O Papa polaco, ao fazê-lo invocando a sua condição de sucessor de Pedro e a colegialidade episcopal, praticamente elevou este princípio moral à condição de dogma.
Por sua vez, Bento XVI denunciou, com grande coragem, este holocausto silencioso, que repete a tragédia bíblica da matança dos inocentes (Mt 2, 16-18). Contudo, ao teólogo Joseph Ratzinger não escapou a aparente falta de oportunidade em propor agora a questão do aborto, uma matéria delicada que o pensamento politicamente correcto entende já ultrapassada na sociedade ocidental, que consagrou, às vezes até na sua lei fundamental, o alegado direito da mulher à ‘interrupção voluntária da gravidez’.
De facto, como certeiramente escreveu Bento XVI, para “uma difusa faixa da opinião pública constituída pelos bem-pensantes poderá parecer exagerado e inoportuno – ou até mesmo fastidioso – que se continue a colocar como questão decisiva o problema do respeito pela vida acabada de conceber e ainda por nascer. Depois dos pungentes debates que acompanharam a legalização aborto, ocorrida nos últimos quinze anos em quase todos os países ocidentais, não se deveria considerar o problema entretanto resolvido e evitar assim que se reabrissem confrontos ideológicos ultrapassados? Porque não resignarmo-nos a perder esta batalha e dedicar as nossas energias a iniciativas que possam vir a obter um consenso social mais vasto? Numa abordagem superficial pode-se ficar com a ideia de que, no fundo, a aprovação legal do aborto pouco ou nada mudou na nossa vida privada e na vida das nossas sociedades. No fundo, tudo parece continuar exactamente como antes. Cada um se pode regular segundo a sua consciência: quem não quer abortar não é obrigado a fazê-lo, quem o faz com a aprovação de uma lei – assim se diz – talvez o fizesse de qualquer maneira. Tudo se consuma no silêncio de uma sala operatória que ao menos assegura condições para uma intervenção com alguma segurança: é como se o feto, que nunca verá a luz, nunca tivesse existido. Quem se apercebe disso? Porquê continuar a dar voz pública a este drama? Não será melhor mantê-lo enterrado no silêncio da consciência de cada um dos protagonistas?” (Joseph Ratzinger, A Europa de Bento na crise de culturas, Aletheia, Lisboa 2005, págs. 47-48).
Vinte anos decorridos sobre este texto, é impressionante a sua actualidade: quantos políticos ‘católicos’ não fazem suas estas desculpas, para assim tranquilizarem a consciência em relação a um certamente incómodo dever de defender a vida humana intrauterina? Quem está interessado em ressuscitar uma questão que muitos, na sociedade portuguesa, entendem já definitivamente ultrapassada?! Não é verdade que, quem o fizer, arrisca-se a ser criticado, até pelos seus pares, pela óbvia inoportunidade de levantar uma polémica já resolvida, bem ou mal, e que necessariamente reacenderá velhas guerras ideológicas e políticas?!
Também na Igreja católica não faltam pastores que entendem que esta questão já está morta e, por isso, é de bom tom não a ressuscitar. Se a Igreja, recém-saída de um escândalo que tanto abalou o seu prestígio e relevância social, suscitasse agora esta problemática, não se estaria a pôr a jeito para novos ataques?! Uma proclamação eclesial a condenar o aborto, ou em defesa da vida intrauterina, não seria entendida como uma ingerência clerical na ordem política e um favor prestado à extrema-direita, cuja influência, na velha Europa, é crescente?! E um bispo, ou padre, que tivesse a insensatez e a falta de tacto político para dar esse passo em falso, não estaria a comprometer a sua carreira eclesiástica?! Paris bem vale uma missa, mas não o aborto…
Se não restam dúvidas quanto à lucidez de Bento XVI, também é verdade o cinismo que se esconde na cumplicidade silenciosa dos que, aparentando prudência e sensatez, dão provas de tibieza e de cobardia. Ainda bem que o Papa Francisco não alinha nesse tacticismo político que, no fundo, é uma traição, não apenas à fé e moral católicas, mas também ao humanismo cristão que, segundo Bento XVI, é o principal fundamento da identidade europeia: “O reconhecimento da sacralidade da vida e da sua inviolabilidade sem excepção não é, portanto, um pequeno problema, ou uma questão que possa ser considerada relativa, em referência ao pluralismo de opiniões presente na sociedade moderna. O texto do Génesis (9, 5-6) orienta a nossa reflexão num duplo sentido (…): 1) não existem ‘pequenos homicídios’: o respeito por cada vida humana é condição essencial para que seja possível uma vida social digna deste nome; 2) quando, na sua consciência, o homem perde o respeito pela vida como coisa sagrada, acaba inevitavelmente por perder também a sua própria identidade.”
P. Gonçalo Portocarrero de Almada