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Pedro Vaz Patto
Feridas que não saram

Tive ocasião de pela primeira vez enfrentar uma vítima de abusos sexuais praticados quando ela era criança e no contexto da Igreja. No exercício da minha profissão já enfrentei muitas outras vítimas desses crimes praticados noutros contextos. Mas nunca pude aperceber-me dos danos que provoca no longo prazo, décadas depois da prática dos factos.

Neste caso (e não é caso único, isso é frequente), a prática dos abusos provocou na vítima uma tal aversão à Igreja que ela se recusa a entrar num seu edifício, mesmo por ocasião de casamentos e batizados dos familiares mais próximos. Por isso, não foi fácil convencê-la a ser entrevistada num desses locais, por não haver alternativa.

Por respeito para com esse seu desejo, da sala onde decorreu a entrevista foi retirado um crucifixo bem visível e de grande dimensão.

Ao ouvir o relato da vítima, onde se sucediam tragédias umas atrás das outras, que não decorriam apenas dos abusos, mas em que estes ocupavam um papel de relevo, vinha-ma à mente a imagem desse crucifixo que havia sido retirado da sala. Como se ele tivesse sido retirado apenas fisicamente. Na verdade, aquela vítima era, ela própria, uma imagem de Jesus crucificado e abandonado. E Ele assumiu os indizíveis sofrimentos dessa pessoa, como os de muitas outras. Mas ela não o sabe, recusa mesmo tal ideia.

A dado passo da conversa, ela disse que não podia existir um deus que permitisse o que lhe havia sucedido: uma criança inocente e de muito tenra idade ser vítima de abusos, como se um qualquer objeto se tratasse, abusos que cinquenta anos depois continuam vivos na sua memória («houve quem as apagasse, mas eu não consigo» - disse). Ao ouvir isso, voltou a vir-me à mente a imagem daquele crucifixo que tinha sido retirado da sala. Deus também permitiu a morte do seu Filho e com ela deu sentido à dor inocente, como um passo para a plenitude da Ressurreição. Mas é claro que aquela vítima não o sabe e é difícil que alguma palavra a possa convencer disso. Por isso, perante aquela sua afirmação que justificava o seu ateísmo, eu só podia ficar calado.

Muito me agradou conhecer uma iniciativa da arquidiocese de Madrid, o Proyeto Repara (www.repara.archimadrid.es), que  procura proporcionar às vítimas deste tipo de abusos um apoio médico e psicológico e também espiritual, propondo um caminho de eventual reaproximação a Deus e à Igreja.

A vítima que entrevistei certamente recusaria liminarmente qualquer proposta no sentido desse apoio espiritual. O que por ela podemos fazer é, sobretudo, o apoio médico e psicológico que lhe tem sido proficientemente dado pelo Grupo Vita. Na verdade, pela primeira vez na sua vida de mais de sessenta anos recorreu a uma psicoterapia e a uma consulta de psiquiatria, que se justificavam desde há muito tempo, e não apenas por causa dos danos provocados pelos abusos que sofreu na infância. «Sinto-me mais aliviado» - disse. Proporcionar este alívio é já muito bom. Não repara o que é irreparável, mas reduz os danos. Uma compensação financeira não repara os danos, mas pode compensá-los permitindo alguns benefícios (para esta vítima, será uma ajuda para a educação dos netos).

A aproximação a Deus e à Igreja desta e de muitas outras vítimas que se afastaram por causa de contra-testemunhos graves como estes, só mesmo um milagre pode consegui-lo. Não desisto de rezar por esse milagre. Porque seria o melhor para essas vítimas. Porque «a Deus nada é impossível».


Pedro Vaz Patto