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Guilherme d'Oliveira Martins
Adélia Prado – Encontro da esperança.
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O poema chama-se “Missa das 10” e foi publicado no volume Pelicano (1987). Pode dizer-se que representa bem a expressão viva da atitude de Adélia Prado relativamente à sua coerência cristã. Longe de qualquer formalismo, o que aqui sentimos é a exigência da escolha do exemplo de Jesus Cristo com todas as suas consequências. Oiçamos, por isso, a poeta que acaba de vencer o Prémio Camões e percebamos que há nas suas palavras a coragem de ir além das aparências ou dos lugares comuns. “Frei Jácomo prega e ninguém entende. / Mas fala com piedade, para ele mesmo / e tem mania de orar pelos paroquianos. / As mulheres que depois vão aos clubes, / os moços ricos de costumes piedosos, / os homens que prevaricam um pouco em seus negócios / gostam todos de assistir à missa de Frei Jácomo, / povoada de exemplos, de vida de santos, / da certeza marota de que ao final de tudo / outra confissão in extremis garantirá o paraíso. / Ninguém vê o cordeiro degolado na mesa, / o sangue sobre as toalhas, / seu lancinante grito, / ninguém. / Nem frei Jácomo”.
O texto exige uma leitura atenta. Quantas vezes não sentimos intimamente desgosto por assistir ao que aqui se relata. E concordamos que muito do que tem sido afirmado pelo Papa Francisco está aqui bem presente. Não bastam as palavras ou a tentação do circuito fechado. A sinodalidade pede-nos que olhemos para além das barreiras com grandeza de espírito, de modo a ver a presença de Deus e a sua ação nas pessoas e nas comunidades que não conhecemos. Infelizmente, há a tentação de não ver e até de esquecer ou de reagir com indiferença. De facto, uma religiosidade deturpada assenta na ideia de posse e não do dom, e Deus não pode ser visto como um meio para alcançarmos desejos imediatos, mas como fim que devemos amar com todo o coração.
Adélia Prado põe no exemplo de frei Jácomo a obrigação de não confundirmos os instrumentos e os fins. Impõe-se a ligação íntima ao exemplo vivo de Jesus Cristo. E ao longo da fecunda obra da poeta encontramos diversas vezes a apresentação de um encontro com os Evangelhos e os Atos dos Apóstolos – como se nos encontrássemos entre a multidão que ouviu o Sermão da Montanha ou entre os convivas da multiplicação dos pães ou da ressurreição de Lázaro. E a verdade é que com uma simplicidade tocante, deparamo-nos com a vida quotidiana de Nazaré ou de Jerusalém. E projetamos isso para os vários cenários da contemporaneidade. Como disse Pedro Mexia, com grande acerto, «os seus textos, que evocam com frequência um meio provinciano e pobre, têm (…) algumas afinidades com o Sul profundo da ficção de Flannery O’Connor, mas enquanto a americana era violenta e sofrida, a brasileira é vitalista e sensual. Poeta de Deus e do corpo, Adélia é poeta do corpo divinizado e do Deus encarnado». E quem invoca esta referência poderia também recordar “O Poder e a Glória” de Graham Greene.
E há sempre um lado de magia na escrita de Adélia Prado, que cultiva a esperança de uma alegria inesperada, como diz em “O Homem Humano” de Terra de Santa Cruz: “Se não fosse a esperança de que me aguardas com a mesa posta / o que seria de mim eu não sei. / Sem o Teu Nome / a claridade do mundo não me hospeda, / é crua luz crestante sobre ais”. E, na relação com as palavras, compreendemos que é a vida e o que ela tem, que sobretudo importa: “O que existe são coisas, / Não palavras. Por isso / te ouvirei sem cansaço recitar em búlgaro / como olharei montanhas durante horas, / ou nuvens. / Sinais valem palavras, palavras valem coisas, / coisas não valem nada. / Entender é um rapto, / É o mesmo que desentender…”.
José Tolentino Mendonça e Miguel Cabedo e Vasconcelos recordam que Adélia provoca escândalo, porque sobre ela recai “a acusação de ser demasiado religiosa e demasiado provinciana” (Tudo o que existe louvará, Assírio e Alvim, 2016). Mas, como Carlos Drummond de Andrade bem viu, mais do que tudo, criou “uma obra poética vital que a coloca, com inteira justiça, entre as grandes vozes do nosso tempo: instigadora na proposta, destemida, na invenção antilírica até ao osso e contudo ardente, sem pingo de condescendência, mas magnificamente sensorial, dinamitando as zonas de conforto onde a poesia moderna se instalou, mostrando que a ortodoxia é uma forma radical de heterodoxia e a mais ínfima reverência deve ser mais temida do que a maior blasfémia”…
É significativo que, num tempo de indiferença e de incompreensão sobre a importância do espírito e do diálogo entre religiões, que a literatura contemporânea de língua portuguesa reserve a uma poeta preocupada com a dignidade das mulheres e com a importância do compromisso religioso o seu prémio mais importante. Longe de qualquer confessionalismo, do que se trata é de reconhecer que a cultura contemporânea tem de abranger um amplo caleidoscópio capaz de compreender não só a vida e a liberdade religiosa, mas também o diálogo entre a arte e o espírito, como forma de afirmar a existência e a dignidade humana como expressão da melhor criatividade e da consideração das pessoas como centro de um humanismo universalista.
E lembramos o célebre poema de Charles Péguy: «O que me espanta, diz Deus, é a esperança./ E disso não me canso./ Essa pequena esperança que parece não ser nada./ Essa esperança menina./ Imortal.» É essa pequena esperança que a cada passo encontramos com Adélia Prado. E não há motivo para nos cansarmos dela…
Guilherme d’Oliveira Martins