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Pedro Vaz Patto
O “dever ser” dos humoristas

Talvez a mais surpreendente iniciativa do pontificado do Papa Francisco (onde as surpresas abundam) tenha sido o seu recente encontro com humoristas das mais variadas proveniência e sensibilidades. Alguns desses participantes salientaram o caracter inédito, e até revolucionário, da iniciativa e do seu discurso, pelo que representaram de solene reconhecimento da dignidade da missão dos comediantes (sim, não estamos habituados a encarar esta profissão como uma missão, mas foi assim que o Papa a ela se referiu). Uma iniciativa inédita e surpreendente também porque significou um estreitar de laços entre mundos (o da Igreja e o dos humoristas) até agora com frequência muito distantes, e até hostis.

Esse propósito de reconhecimento da dignidade da missão dos comediantes é notório em todo o discurso do Papa:

«No meio de tantas notícias sombrias, imersos como estamos em tantas emergências sociais e até pessoais, tendes o poder de espalhar a serenidade e o sorriso. Estais entre os poucos que têm a capacidade de falar com pessoas muito diferentes, de gerações e origens culturais diversas.

À vossa maneira, unis as pessoas, porque o riso é contagioso. É mais fácil rir em conjunto do que sozinho: a alegria abre à partilha e é o melhor antídoto contra o egoísmo e o individualismo. Rir também ajuda a abater as barreiras sociais, a criar ligações entre as pessoas. Permite-nos exprimir emoções e pensamentos, ajudando a construir uma cultura partilhada e a criar espaços de liberdade. Lembrais-nos que o homo sapiens é também homo ludens; que o divertimento lúdico e o riso são fundamentais para a vida humana, para nos expressarmos, para aprendermos, para darmos significado às situações.

O vosso talento é um dom, um dom precioso. Juntamente com o sorriso, difunde a paz, nos corações, entre as pessoas, ajudando-nos a ultrapassar as dificuldades e a suportar o stress diário. Ajuda-nos a encontrar alívio na ironia e a levar a vida com humorismo».

Alude também esse discurso à função crítica do humorismo, que é também pedagógica (castigat ridendo mores, já diziam os antigos):

«Denunciais os excessos do poder, dais voz a situações esquecidas, chamais a atenção para abusos, assinalais comportamentos inadequados... Mas sem espalhar alarme ou terror, ansiedade ou medo, como faz muita comunicação (…)»

Poder-se-á pensar que, com esta iniciativa e este discurso, o Papa está a ignorar, ou até “abençoar”, todos os aspetos negativos, ofensas, obscenidades ou blasfémias de pretensos humoristas que têm originado críticas de pessoas diretamente visadas e também de fieis de várias religiões. Algumas dessas críticas são devidas à falta de sentido de humor, outras não tanto (eu, pelo menos, compreendo muitas delas).

Mas, de uma forma discreta, delicada e construtiva, o Papa aponta para um “dever ser” da missão dos comediantes. A cada um caberá verificar se se está próximo ou afastado desse “dever ser”. Nesse sentido, afirma ele no seu discurso:

«O humorismo não ofende, não humilha, não prende as pessoas aos seus defeitos. (…) O riso do humorismo nunca é “contra” alguém, mas é sempre inclusivo, proativo, suscita abertura, simpatia, empatia».

Na verdade, na crítica humorística, como noutros tipos de crítica, política ou outra, vale sempre a distinção entre o erro e a pessoa que erra; o erro pode ser criticado e ridicularizado; não assim a pessoa e a sua dignidade de pessoa.

Outro aspeto surpreendente do discurso do Papa foi o da alusão ao humor relativo a Deus:

«Também se pode rir de Deus? Claro que sim, e não se trata de blasfémia, pode-se rir, tal como se joga e se brinca com as pessoas que amamos. A tradição sapiencial e literária judaica é mestra nisto! É possível fazê-lo, mas sem ofender os sentimentos religiosos dos crentes, sobretudo dos pobres.»

Pode rir-se de Deus como se brinca com as pessoas que amamos. O amor a Deus e ao próximo é a chave da questão, que afasta qualquer blasfémia ou ofensa aos sentimentos religiosos dos crentes. Estas nunca poderão ser expressão de amor; pelo contrário. E importa ter o cuidado de evitar que sejam mal interpretadas expressões que não são de desamor ou irreverência.

Eis, então, o “dever ser” dos humoristas expresso neste surpreendente discurso do Papa Francisco.

 

Pedro Vaz Patto