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Ética ou falta dela, por António Bagão Félix
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Agora que se comemoram os 100 anos da República a propalada ética republicana promete voltar em catadupa, por mimetismo ou proselitismo. Como já tivemos três Repúblicas, o que quer dizer essa adjectivação da ética? É que já houve de tudo no plano ético e político. Uma coisa e o seu contrário. De positivo e de negativo. De construtivo e de destrutivo. De seguidismo e de persecutório. De direitos e de míngua deles. De verdade e de mentira. De carácter e da sua falta. De serviço probo e de aproveitamento criminoso.
A verdadeira ética não é apropriável. Existe por si ou não existe. Bem sei que somos todos cidadãos e não súbditos. Logo, portadores de direitos e de obrigações. Mas antes e acima do cidadão há sempre a pessoa. Com inteligência, vontade, percepção e consciência. Pessoa e cidadão são indissociáveis na razão ontológica e teleológica da nossa individualidade. Quando se fragmentam, a ética dissolve-se, a degradação acontece, a miséria humana avança, a dignidade escasseia. Qualquer doutrina ou ideologia que contribua para a segmentação daquilo que, em caso algum, não é segmentável, sucumbe mais tarde ou mais cedo.
Diz-se que a ética republicana consiste sobretudo em cumprir escrupulosamente a lei. Já o fariseu era um absoluto legalista. Acontece que o conjunto das normas jurídicas e o conjunto das normas éticas jamais coincide. Há matérias reguladas pela lei que não exprimem qualquer juízo ético, como há muitas regras de conduta ética que não estão juridicamente plasmadas. A ética não se estrutura na dicotomia legal / ilegal, mas radica na consciência. O conjunto do que é moralmente aceitável (o legítimo) é mais restrito do que é juridicamente aceitável (o legal). Nem tudo o que a lei permite se nos deve impor, e há coisas que a lei não impõe mas que se nos podem e devem impor. A pessoa tem mais deveres éticos do que o cidadão. A consciência de uma pessoa honesta é mais exigente do que o produto de um legislador. A lei é o limite inferior da ética. A legitimação democrática de umas eleições é politicamente relevante, mas não se vota sobre o que é verdadeiro ou falso, nem sobre o bem e o mal.
Nenhuma lei proíbe em absoluto a mentira, a desonestidade, a deslealdade, a malvadez, o ódio, o desprezo, a vilanagem… Como nenhuma lei só por si assegura a decência, a verdade, a amizade, a generosidade…
Por isso, não faz sentido adjectivar ou catalogar a ética: a ética republicana, a ética dos negócios, a ética desportiva ou outra qualquer. Há simplesmente a ética. Pura e, não raro, dura. Onde não há lugar para essa “terceira categoria” ética dos actos indiferentes entre os actos bons e maus.
Sou radicalmente contra o que chamo de ética da quantidade e ética condicional. Mas está na moda. Por onde escapam e até têm sucesso os menos escrupulosos. O carácter e a decência passaram a andar de mãos dadas com um qualquer “se”, “mas”, “talvez” ou “mais ou menos”. Ouve-se frequentemente dizer que certa pessoa é muito honesta. Ou pouco honesta. Como se a honestidade tivesse um medidor. Não basta dizer que a pessoa é honesta? Ou que não é honesta? Para quê o muito ou o pouco? Ou o quase sempre, ou o às vezes? Pode-se ser honesto face a um milhão e ser desonesto em presença de um cêntimo? Pode-se ser decente de manhã e não decente à tarde?
A linguagem tem sido sujeita a uma anestesia ou mudez moral que favorece o relativismo ético. Os fins passaram a justificar qualquer meio. Hoje os mentirosos já não mentem. Dizem inverdades. Certas fraudes já não o são. Foram promovidas tecnocraticamente a imparidades. Um conflito de interesses pode não o ser. Depende do próprio interesse. A desonestidade é, não raro, um mal menor. Até lhe chamam flexibilidade. A batota pode não o ser. Depende do batoteiro. O trabalho meritório conta menos. Vale mais a esperteza arrivista. O valor ético da exactidão esvazia-se. O que conta é o calculismo da inexactidão. A prudência é imprudente. Foi substituída por sinais exteriores de coragem bacoca. A iconografia do sucesso mesmo que aparente substitui a iconografia dos valores mesmo que imprescindíveis.
Olhemos para a crise global que se instalou no mundo. Há muitas explicações técnicas mas, no fim, chegamos sempre à escassez ética onde a fronteira entre o bem e o mal se erodiu fortemente. Olhemos para o que se passa na governação do nosso país, onde a verdade definha, a autenticidade escasseia, o exemplo desaparece. Onde é conveniente separar a pessoa da função e a função da pessoa, como se o carácter fosse divisível. Onde há faces ocultas de quem nada deveria ter a ocultar. Onde assuntos públicos se disfarçam de privados e os juízos éticos não vão além de um qualquer sistema sancionatório ou penalista. Tristes faltas de ética. Chamem-lhe republicana ou não.