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Tesouro em vasos de barro, pelo padre Hermínio Rico
As notícias dos últimos dias sobre padres pedófilos são perturbadoras. Para lá da repulsa e incondicional condenação que tais factos têm que suscitar em qualquer pessoa, para um padre, dum modo especial, causam uma amargura muito personalizada. Não se trata apenas da vergonha corporativa causada por sacerdotes indignos terem manchado o exercício deste ministério de uma forma indesculpável. É o próprio ser de cada padre que é de repente posto sob suspeição.

A vocação sacerdotal e as suas motivações e, em particular, muitas das funções ministeriais a que tantos padres mais entusiasticamente se entregam (nomeadamente, o apostolado com jovens) sujeitam-se a ser olhados com alguma desconfiança. A dúvida espreita, pode revelar-se num olhar, disfarçar-se numa piada desajeitada, ou, mesmo se sujeita a escrupulosa dissimulação, continuar lá, no pensamento do outro, latente. Nunca sabemos, a incerteza paira e cria insegurança. Ser padre é, nestes dias, estar particularmente vulnerável à suspeita.

Mas estar vulnerável não tem que ser uma ameaça. Muito menos uma ameaça a pedir atitudes defensivas (para já não falar em contra-ataques, que seriam completamente despropositados). A tentação defensiva é grande, mas perigosa. Alguma da revolta presente vira-se precisamente contra as estratégias passadas de ocultamento que, em nome da defesa do bom nome e da missão da Igreja, permitiram a continuação dessas práticas abomináveis e o alargamento do número de vítimas. A preocupação com a defesa da Igreja não deixou perceber que se estava a descurar a defesa dos inocentes. Tal eclipse de julgamento provoca agora remorso e vergonha.

Hoje percebe-se, com um preço muito elevado, que não há incomodidade pessoal nem reputação institucional que justifique o mínimo de tolerância ou impunidade. Os perpetradores têm que ser investigados, processados e julgados pela lei civil e às vítimas oferecida toda a compreensão, apoio efectivo e ressarcimento, procurando, no que for possível (e, infelizmente, muito já não o é), reparar o terrível mal que sofreram.

Como consequência desta transparência, o sacerdócio e a Igreja ficam fragilizados, mais susceptíveis a ataques, desfigurados, até. Ser padre nesta vulnerabilidade pode chegar até a ser penoso, mas não afecta nada do essencial desta vocação de identificação com Cristo e serviço aos outros. Antes pelo contrário. Pode abalar apenas uma certa ideia de padre tingida de clericalismo, de tendências para pseudo-sacralizações ou idealizações demasiado angélicas desta vocação. Afinal, os padres não são impecáveis, são apenas humanos, tão humanos como qualquer outra pessoa. Se isso fosse preciso, esta ferida evitaria qualquer resquício de triunfalismo neste ano sacerdotal.

Para nós, padres, este tempo doloroso e humilhante chama-nos a uma maior valorização do dom que temos – um tesouro que levamos, com temor e tremor, em vasos de barro. O nosso serviço é para ser prestado na fragilidade. Não precisamos tanto do conforto exterior duma reputação de impecabilidade, precisamos mais do desejo humilde duma fidelidade buscada diariamente com afinco e vivida na disponibilidade para o serviço, mesmo que sob um ou outro olhar de suspeição. O nosso chamamento é para uma identificação sempre maior com Jesus Cristo, que viveu também acossado, sob suspeita, vulnerável numa vulnerabilidade escolhida e assumida por Ele.