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Pe. Alexandre Palma
Igreja e periferias: por que vos abandonais?
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A história tem destas coisas: umas vezes surpreende-nos com algo inaudito; outras repete-se, devolvendo-nos a algo já vivido.

Corria o ano de 1877. Monsenhor Dupanloup, bispo francês, batia-se com vigor para contrariar o que sentia ser um crescente indiferentismo religioso. Publicamente, lançara o desafio: «Quem me dirá, por que nos abandona este povo»? O desafio era também um desabafo, expressão de uma perplexidade diferente, trazida por tempos diferentes. A industrialização tinha atraído às cidades uma multidão de camponeses, seduzidos pela possibilidade de uma outra vida. Este êxodo moderno reinventou as cidades e inventou as periferias. Estas serviam de depósito residencial e laboral para essas hordas de deslocados. Emergia, assim, um povo novo, uma massa de pobres, urbanos, trabalhadores e assalariados. Era sobre estes que Dupanloup falava. Era a eles que, perplexo, questionava: «Por que nos abandonais»? Até que um deles, o senador e operário Claude Corbon, lhe respondeu: «Abandonamos-vos hoje, porque há séculos nos abandonastes vós». Com isto, não deixava de reconhecer que a Igreja se mostrara pródiga em facultar-lhes os «socorros da religião». Mas apenas isso, desatendendo das suas necessidades temporais. E como numa estocada final, rematava declarando: «O ódio pela Revolução apagou do vosso ambiente o amor a Deus». E foi assim que, segundo a leitura histórica de Andrea Riccardi, a Igreja perdeu o proletariado para o socialismo e, mais grave, perdeu as periferias para fé.

O fenómeno da urbanização tomou hoje uma escala global. Desde 2007 são mais os que vivem em contextos urbanos do que em ambiente rural. De cidades grandes passámos às megalopolis contemporâneas, com frequência cidades de cidades, extensas áreas geográficas ocupadas por um contínuo urbanizado. E as populações que as habitam já não se transferem apenas de alguns espaços rurais, mas potencialmente de qualquer parte do globo.

É aqui que a história, tanto surpreende quanto se repete. Parece ter-se já ultrapassado o limiar do humanamente possível neste incremento urbano. Surpreendentemente, cidades há que continuam a crescer sem colapsar (pelo menos assim parece). Mas a história repete-se, na multiplicação de periferias. Estas aumentam na exacta proporção do incremento das nossas cidades. E tal sucede de forma porventura ainda mais insidiosa, crescente não apenas no número daqueles que abraça, mas também na multiplicação das formas possíveis de se ser periférico.

Há uma coisa, contudo, que seria bom não repetir: a perda das periferias para a fé. Eis porque, profeticamente, o Papa Francisco as colocou na ordem do dia. A sensação de abandono talvez seja recíproca, tal como se percebe no diálogo surdo entre Dupanloup e Corbon. De um lado, pode hoje verificar-se também uma reacção de perplexidade perante um distanciamento que, com demasiada frequência, é apressadamente lido como indiferença religiosa. Do outro, pode hoje pressentir-se um alheamento eclesial face às necessidades mundanas sentidas por quem é e vive na periferia. O desencontro entre Igreja e periferias será hoje, como o foi ontem, trágico para ambas. Para as periferias, porque somaria mais esta expressão de isolamento a todas as demais. Para a Igreja, porque a afastaria da sua missão, da sua origem (sim, porque também ela nasceu como periferia!) e, sobretudo, da predilecção de Jesus por esses que, afastados dos centros, se conservam à distância.