Lisboa |
Livro ‘Sermão da Montanha – Caminho de um peregrino’, do padre Ricardo Neves
“Manter viva a palavra de alguém que sempre abriu as portas de Deus”
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São 25 catequeses proferidas pelo padre Ricardo Neves, jovem sacerdote falecido em agosto passado, aos 42 anos, que são agora publicadas no livro ‘Sermão da Montanha – Caminho de um peregrino’. Uma edição que “lembra-nos o sermão da montanha, como quem realmente O ouviu e já subiu ao monte”, como sublinha no prefácio o Cardeal-Patriarca.

 

Um pescador sempre com o anzol na ponta da cana. Com uma palavra de desafio ou convite pronto para acertar em cheio, até num coração mais distraído. Era assim o padre Ricardo Neves, quando orientava os jovens no seminário ou os despertava para esta vocação, ou quando, já pároco do Estoril, chamava os seus paroquianos a missões concretas na comunidade, na família ou no trabalho.

A história do Grupo de Peregrinos, cujas catequeses proferidas pelo falecido padre foram agora editadas no livro ‘Sermão da Montanha – Caminho de um peregrino’, também começou assim. Com um convite, um desafio pessoal deixado a cada um para que viesse conhecer melhor Jesus. E o que nasceu de um ‘sim’ a uma proposta do padre Ricardo veio a transformar-se num compromisso exigente vivido ao longo de vários anos, com catequeses mensais, pistas de oração diária, propostas concretas de voluntariado e peregrinações marcantes. “Foi um grupo que ele chamou. Um a um. Ele conhecia-nos a todos mas nós não nos conhecíamos uns aos outros”, conta Pedro Mello, recordando o repto recebido pelo então padre amigo que por vezes recebia em sua casa, para umas conversas informais onde se falava sobre temas específicos e algumas dúvidas de fé. “Ele é que criou o grupo. Decidiu que íamos ser peregrinos. Mas sublinhava bem que éramos escolhidos por Deus e não por ele, padre Ricardo”, acrescenta o paroquiano do Estoril, sem saber explicar a origem do convite feito àquelas 16 pessoas, no ano de 2007. “O que sei é que ele tinha uma capacidade e rapidez de análise únicas. E sabia o que estava a fazer. Se nós ainda estávamos a pensar na partida, ele já sabia onde era a meta, onde queria chegar”.

Foi assim também com Pilar Freire de Andrade, que já conhecia o padre Ricardo enquanto vice-reitor do Seminário de São José de Caparide, e que depois viria a trabalhar bem de perto com ele no cartório da paróquia do Estoril, onde Ricardo Neves foi pároco desde 2011 até à hora da sua morte, em agosto do ano passado. “Éramos pessoas que ele já acompanhava e que desafiou para ir”, recorda. Com idades dos 20 aos 60 anos, da zona de Cascais/Estoril mas também de Lisboa, casados e solteiros e com percursos pessoais bastante distintos.

 

Entregues à Providência

Após alguns encontros de preparação, o Grupo de Peregrinos fez-se à estrada rumo a Santiago de Compostela, dois a dois, para um caminho de muita oração, Missa diária, e um verdadeiro espírito de grupo. Depois dessa experiência que a todos tocou, e que ditou a estreia de alguns em peregrinações, o sacerdote anunciou que a proposta era continuar o caminho de aprofundamento do que é ser cristão e propôs encontros mensais de estudo e oração. Assim foi, no primeiro ano com a formação dedicada ao Evangelho de São Marcos, depois às cartas de São Paulo e aos salmos. Dois anos mais tarde, a mesma caminhada espiritual foi iniciada com outro grupo de peregrinos, em paralelo, e a peregrinação fez-se entre Santiago de Compostela e Finisterra, também em Espanha.

Aqui o patamar de exigência foi bastante elevado, recorda Pilar Freire de Andrade. Logo no arranque da peregrinação, calculou-se o valor monetário para as despesas e cada um colocou o seu contributo numa bolsa, achando que, à semelhança da caminhada anterior, esse dinheiro seria administrado por alguém do grupo que trataria da alimentação e do alojamento. Mas o padre Ricardo decidiu entregá-lo a uma instituição de apoio a sem-abrigo e o grupo fez-se à estrada sem nada.

“Fomos completamente entregues à Providência”, lembra Pilar, sublinhando que ninguém sai igual de uma experiência destas, que obriga a “largar as coisas que não interessam na vida e a arrumar a ‘casa’ por dentro”. Dormiram no chão porque não havia dinheiro para os albergues, até numa casa em obras sem janelas e portas, comeram do que lhes deram e viveram à mercê da generosidade de quem iam cruzando na estrada. “Houve quem nos desse uma desanda, mas também quem nos desse muito mais do que esperávamos. Nunca passámos fome. E começámos com menos e foi sempre aparecendo mais. No último dia foi uma festa, até tínhamos fiambre”, conta a paroquiana do Estoril. Pedro Mello também recorda estas aventuras e garante: “Tal como o padre Ricardo anunciara, a Providência tomou conta de nós”.

 

Exigência

Nos anos seguintes, 2010 e 2011, o Grupo de Peregrinos meditou sobre a constituição dogmática ‘Lumen Gentium’ sobre a Igreja, a carta do Patriarca sobre a nova evangelização e a exortação do Papa sobre a vocação e missão dos leigos. E peregrinou até Roma. A metodologia de trabalho era sempre a mesma: leitura do texto, comentário do sacerdote e pistas de oração. Mas o padre Ricardo “ia sempre apertando um bocadinho mais”, afirma Pedro Mello, sublinhando a exigência e o rigor que impunha em tudo. Os peregrinos foram também desafiados à acção prática e começaram a fazer voluntariado na Casa de Saúde do Telhal, no Centro Paroquial da Boa Nova e na Cercica. Quando o padre Ricardo Neves adoeceu, no verão de 2014, o grupo continuou sozinho a reflectir sobre a Palavra de Deus e mais recentemente retomou os encontros de estudo com a direcção espiritual do novo pároco do Estoril.

Hoje reconhecem que esta caminhada de grupo e o acompanhamento pessoal que o sacerdote fazia a cada um foram transformadores das suas vidas. E da vida de muitos outros: “É impressionante ver a marca dele no Estoril”, diz Pedro, testemunha do trabalho de conversão que o padre Ricardo foi suscitando também junto dos jovens, através de campos de férias como o Milonga, em que este católico está envolvido há 11 anos.

Pilar acrescenta: “Ele tinha uma capacidade de relação muito profunda com cada pessoa que se cruzava com ele. Dava para todos e tratava todos de forma especial, individual e única. O que, no fundo, é a forma como Deus nos trata”.

 

“Mastigar” a Palavra de Deus

Desde cedo, muitos sentiram necessidade de registar o que iam ouvindo de Jesus através das palavras do padre Ricardo Neves, em papel e caneta, ou através de meios mais fiáveis e sofisticados. Foi o que fez Pedro Mello, que gravou todas as catequeses orientadas mensalmente pelo sacerdote, para poder disponibilizar a algum peregrino que não tivesse comparecido no grupo ou para revistar durante o mês, até no carro, como forma de “mastigar” a Palavra de Deus. É parte desse “tesouro” que agora chega ao público através do livro ‘Sermão da Montanha – Caminho de um peregrino’ porque, como diz Pedro Mello, seria um “ato egoísta” não o partilhar com mais pessoas.

Entre 2012 e 2014, o grupo aprofundou e estudou o Sermão da Montanha, ao longo de 25 catequeses que não ficaram totalmente completas (faltam os versículos 12-23) porque o padre Ricardo entretanto adoeceu. Apesar de haver muito material disponível em áudio, gravado nas palestras que o sacerdote foi proferindo ao longo dos anos, este era, contudo, o bloco mais consistente e mais facilmente editável, explica a Lucerna, chancela da Editora Principia, que publica a obra. As 20 horas de gravações foram passadas à forma escrita pelas Irmãs Concepcionistas do Mosteiro da Imaculada Conceição de Campo Maior, com as quais o sacerdote tinha uma profunda ligação. Depois foram confiadas a um grupo de ‘costureiros’ composto por pessoas que lhe eram muito próximas: três seminaristas (Miguel Vasconcelos, Luís Trocado e Bernardo Trocado, este último ordenado sacerdote no passado Domingo), o padre Paulo Malícia, seu amigo de longa data e atual pároco do Estoril, e Carmo Diniz, da Principia.

Miguel Vasconcelos explica que as catequeses vinham “em bruto, numa linguagem exclusivamente oral, com referências que apenas diziam respeito ao grupo, com um plano de oração proposto no tempo, ao ritmo específico daquele grupo, com referências ao tempo litúrgico em que tinham acontecido e também com citações bíblicas feitas mais informalmente”. Havia também “algumas piadas, como seria de esperar”, acrescenta o seminarista que conheceu o padre Ricardo em 2005, no campo de férias Milonga, e que com a sua ajuda foi construindo a sua resposta a Deus de entrar no seminário. A tarefa dos ‘costureiros’ foi, assim, fixar um texto final que mantivesse a originalidade do texto e a ligação íntima que tinha com o padre Ricardo e com a sua personalidade. “O olhar de pai e de amigo que sempre experimentei dele vinha também de Deus e quem, como eu, o conheceu sabe que isso não se esquece. Há algo desse olhar no livro que agora se publica, e o objectivo da nossa ‘costura’ era também ser-lhe transparente”, explica Miguel.

 

Expectativa

Na paróquia do Estoril a chegada deste livro é aguardada com grande expectativa, garante o pároco, padre Paulo Malícia, sublinhando, contudo, que este não é um livro de homenagem nem tão pouco um livro escrito expressamente por Ricardo Neves. “A sua intenção é manter viva a palavra de alguém que era um homem de Deus e que sempre nos abriu as portas de Deus”, afirma o grande amigo do falecido sacerdote.

O padre Paulo Malícia adianta ainda que outras iniciativas poderão vir a ser tomadas a partir da imensidão de material catequético que o padre Ricardo deixou.

  

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‘A Palavra de Jesus é que tem santidade’

O ‘Sermão da Montanha’, editado pela Lucerna, é, nas palavras do padre Ricardo Neves, o coração do Evangelho e a cartilha do cristão. As 25 catequeses que o autor proferiu a um grupo de peregrinos totalizam mais de 20 horas de gravação, foram transcritas, editadas e passadas a livro. Ao longo de 190 páginas, são analisadas passagens bíblicas como as Bem-Aventuranças ou o Pai-Nosso. Ficam apenas por analisar os versículos 12-23 do capítulo 7 do Evangelho de São Mateus, que a falta de saúde do autor não lhe permitiu concluir. Como pode ler-se na introdução do livro, “até para essa situação ele nos deixou um esclarecimento importante: ‘Não andamos a rezar as meditações do padre Ricardo ou qualquer linha espiritual. E, porque é que eu digo isto? É que isto, para mim e para vocês, é mesmo importante: a Palavra de Jesus é que tem santidade. Santidade’”.

Apresentado pelo Cardeal-Patriarca, D. Manuel Clemente, na noite do passado dia 29 de junho, o livro ‘Sermão da Montanha – Caminho de um peregrino’ pode ser adquirido, numa primeira fase, na paróquia do Estoril e em www.principia.pt. A partir de 29 de setembro, a obra vai estar também disponível na livraria Nova Terra, no Patriarcado de Lisboa (Mosteiro de São Vicente de Fora), e noutras livrarias de todo o país.

  

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Prefácio do livro ‘Sermão da Montanha – Caminho de um peregrino’: Uma vida em forma de Cruz

É frequente a referência aos dois braços da Cruz, vertical e horizontal como são. Frequência reveladora da verdade que transporta, podemos acrescentar. Todavia, do dizer ao saber o caminho pode ser longo. Algumas vezes não dura muitos anos, mas percorre sempre uma grande distância interior. Talvez a maior de todas, que vai da cabeça ao coração, como também há quem diga.

E como há quem viva. O Padre Ricardo Neves percorreu essa distância nos anos que passou na terra, que não foram muitos mas foram extraordinariamente preenchidos. Conheci-o adolescente e jovem, quando se formou nos Seminários do Patriarcado. Já dava sinais, muitos sinais, dessa distância interiormente percorrida. Depois, como padre, formador de seminaristas e pároco, muitas pessoas beneficiaram com isso. Hoje, quando permanece connosco doutro modo, oiço repetidos ecos do bem que lhes fez, a partir do muito que aprendeu com Cristo.

Agradeço a feliz iniciativa de recolher, transcrever e editar algumas das catequeses do Padre Ricardo neste livro que tanto bem fará aos seus leitores. Não terá o rosto que assim se exprimia, senão na recordação, na imaginação, ou na fotografia. Mas o que diz e o modo como o dizia irrompem em cada linha do discurso transcrito.

Tudo é direto, como só acontece com quem já sabe e não precisa de andar à volta do assunto. Tudo é expressivo, com alusões fortes e certeiras. Fala de Cristo e das bem-aventuranças, lembra-nos o sermão da montanha, como quem realmente O ouviu e já subiu ao monte.

Não acontece assim com muitos. Mas acontece em alguns por todos e para todos. Aconteceu com o Padre Ricardo, por ele e para nós. Nos dois braços da Cruz, vertical e horizontal como são.

Porque ele era também horizontal. No que isto significa de pés assentes na terra chã de nós todos, gente deste mundo de penas e sonhos. Tinha sentimentos fortes, reagia com espontaneidade e humor, ralhava ou gargalhava conforme os casos, amava a beleza, tinha e mantinha amizades. Sofria, se era de sofrer, brincava se era de brincar.

Mas o traço horizontal da sua vida cruzava-se ao meio com o vertical que vai da terra ao céu, como o descobrira em Cristo. Por isso, a conversa podia passar rapidamente do agradável ao profundo, do jocoso ao sério, do episódico ao mais duradouro. Porque nele os dois braços não se sobrepunham, cruzavam-se realmente, fazendo de cada momento uma ocasião de outra coisa, do aquém ao além e vice-versa.

Neste livro, encontramos muitos exemplos do que vai dito. Frases como: «no meio do sofrimento, serão consolados aqueles que se abrirem a Deus e ao caminho que Ele traça no meio deste mesmo sofrimento» (p. 28); «Deus sofre onde sofrem as pessoas» (p. 61); «Deus prega no mundo uma estaca de amor» (p. 104), estão impregnadas da sabedoria da Cruz.

Sabedoria que não reduz existencialmente nada, em nós e nos outros, mas encontra Deus no âmago das coisas, fazendo de tudo uma oportunidade de mais. Como também o sabia e continuamos a ouvir: «porque sempre acreditámos – porque acreditamos no mistério de Cristo - que há mais para o Homem» (p. 49); ou «Deus só me pede que corte porque me está a dar mais» (p. 77) …

Houve no Padre Ricardo, e bem cedo houve, a descoberta da vida em Cristo, como capacitação absoluta para a terra e para o céu. Outro modo de indicar um “Reino”, que, sendo de Deus, corresponderá às mais profundas aspirações de todos. O que obriga a levantar os olhos para um horizonte menos raso e a acolher uma vontade muito maior do que a nossa. Vontade que nos leva mais longe, porque não desiste de nos oferecer tudo. Neste sentido vão outras frases a ler: «A paz que Jesus encontrou na sua Morte e na sua Paixão resulta da sua sintonia com a vontade do Pai» (p. 39); «a vontade de Deus é o melhor sabor para as coisas» (p. 48); «a vontade de Deus é sempre boa» (p. 187).

Muito cedo o Padre Ricardo encontrou em Cristo uma possibilidade total, que agora plenamente vive. Encontrou terra firme, «porque esta nova terra não é um sítio, é uma forma de vida» (p. 30). Tudo num encontro em que a vida lhe coube inteira, fosse aonde fosse, seminário, paróquia ou hospital: «o Reino é a construção da vida humana a partir da relação com Jesus» (p. 166).

E assim continua a ser, na glória da Cruz. Obrigado Padre Ricardo e mil graças a Deus, que nos ofereceu o teu testemunho.

 

+ Manuel Clemente

texto por Rita Carvalho; fotos DR
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