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Pe. Alexandre Palma
Por um cristianismo sapiencial
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Que fisionomia dar ao cristianismo? Talvez precisemos de nos pôr de acordo acerca disto. Não procuro nem espero unanimidade na resposta. Penso que nos bastará um acordo no fundamental. Este é um tema da máxima actualidade e creio que da sua resposta depende muito do desafio com que, como Igreja, estamos sempre confrontados: a evangelização. Certamente a evangelização dos que estão longe do Evangelho. Mas também a sempre inconclusa evangelização dos que já abraçaram o Evangelho. Digo ser esta uma questão actual, porque a vejo por detrás dos debates e crises que vão atravessando a vida eclesial: no âmbito da vida familiar e conjugal, como traduzir aí o que é isso de se ser de Cristo?; no âmbito social e político, mas também no universo das relações laborais, como ser cristão aí?; na liturgia, campo hoje gerador de estranhas paixões e contra-paixões, que rosto de Igreja queremos nela desenhar?; no campo da catequese, como iniciar numa autêntica vida cristã aqueles que a frequentam?; ou simplesmente, o que é isso de se ser uma comunidade cristã? Perguntas deste género poder-se-iam multiplicar quase até ao infinito. Em todas elas, porém, se insinua uma inquietante procura pela forma concreta que o ser cristão pode e deve assumir em cada tempo. Precisamente, aquilo que aqui comecei por chamar fisionomia, mas que autores mais autorizados na matéria vêm referindo como «estilo» de se ser cristão (C. Theobald, por exemplo).

Para viver o presente e preparar o futuro vale a pena revisitar o passado. E no passado da fé cristã encontramos mais possibilidades de resposta a esta pergunta do que, porventura, poderíamos supor. Foco, intencionalmente, o olhar nas três grandes compilações que compõem o Antigo Testamento: o Pentateuco, os Profetas e os Sapienciais. Elas são isso mesmo, formas de agrupar a longa lista de escritos de que se compõe o Antigo Testamento. Mas nelas talvez possamos ver mais. Numa leitura simbólica deste dado, talvez possamos ver nelas três possíveis estilos de se ser crente e cristão: um estilo legal (ou ao limite legalista); um estilo profético; e, por fim, um estilo sapiencial. Correndo conscientemente o risco de incorrer em simplificações redutoras, poder-se-á dizer que o cristianismo, em tempos passados, já se conjugou em estilo marcadamente legal. Outros tempos e outras circunstâncias não apenas o terão tornado possível, como até mesmo o forçaram a tal. Quero crer, contudo, que a Igreja percebe não ser esta a fisionomia que hoje é chamada a adoptar. Pelo menos assim o sinto. Parece-me que em tempos mais recentes a Igreja tem assumido um estilo mais marcadamente profético. Desde a sua empenhada defesa do valor fé perante a razão e do valor da razão perante o cepticismo até ao cristianismo social, com a sua sonora denúncia de todas as opressões e com o seu comprometido empenho pela vida, pela paz e pela justiça, o cristianismo tem sido profeta e tem sabido sê-lo.

Julgo, porém, que o nosso tempo e cultura (refiro-me ao mundo ocidental) pedem um cristianismo sapiencial. Não recuso que ele já o tenha sido no passado e o seja também no presente. Todavia, não parece ser como lugar e caminho de sabedoria que a Igreja e o Evangelho são imediatamente percebidos. E poderiam e deveriam sê-lo. Não proponho sequer que se abandone o que de verdade há na norma ou no vigor profético. Contudo, parece-me que hoje a realidade nos pede mais. Verifico, além disso, tamanhas afinidades entre este nosso tempo e aquele em que nasceram os escritos sapienciais bíblicos que sou levado a pensar que a resposta de então é ainda actual. É que também nós somos sobreviventes de muitos exílios. É que também nós somos herdeiros de um tesouro (religioso e cultural) que tememos depauperar. É que também nós erguemos um templo que parece nunca passar de uma sombra daquele que aqui já existiu. É que, no fundo, também nós andamos em busca de um modo sábio de viver, porque quanto mais a vida nos escapa mais procuramos «vida e vida em abundância» (Jo 10, 10). E nisso o Evangelho é o Mestre.

[Caro leitor(a): talvez volte a este assunto]