«O que aconteceu no Vaticano II»? A provocadora pergunta não é minha. É do historiador John O’Malley. Mas, na sua simplicidade, ela é certeira. São muitos os que hoje se debatem com esta questão. Na verdade, nela podemos condensar uma outra interrogação: como devemos hoje interpretar esse evento charneira na história recente da Igreja? O Concílio Vaticano II (1962-1965) foi um momento de ruptura com o passado da Igreja? Ou ele representa, ao invés, um mero prolongar de perspectivas e afirmações já anteriormente assumidas e consolidadas? No fundo, qual a «hermenêutica» que interpreta com verdade e justiça o Vaticano II?
Aos menos iniciados no tema poderá soar estranho, mas a questão da «hermenêutica do Concílio» é hoje palco de uma das mais acesas discussões no seio da Igreja. Apesar dos tempos de apatia em que vivemos, este tema é ainda capaz de gerar polémica. Duas perspectivas insuficientes se podem adoptar. De um lado, uma «hermenêutica da ruptura», isto é, um modo de ver o Concílio como uma pura descontinuidade relativamente ao que o precedeu. Do outro, uma «hermenêutica da continuidade» que menoriza e dilui a novidade que o Concílio efectivamente nos trouxe. Nenhuma das duas dá verdadeira conta dos factos. A primeira, tende a desligar a Igreja pré-conciliar da Igreja pós-conciliar (numa dialéctica de tipo marxista). A segunda, simplesmente não sobrevive ao evidente contraste entre alguns pronunciamentos eclesiais anteriores a 1962 e certas tomadas de posição assumidas no próprio Vaticano II.
Não posso deixar de verificar como essa tal «hermenêutica da ruptura» parece ser perfilhada tanto por quem vê no Vaticano II a raiz de todos os males que hoje afligem a Igreja, como pelos que se entristecem por não verem ainda levado às suas últimas consequências o «espírito do Concílio». Se me deixarem usar o cliché, tanto por conservadores como por progressistas. Uns tendem a ver no Concílio as águas revoltas de um tempo que afastou a barca de Pedro da rota que Deus lhe havia indicado. Outros parecem querer ver no Vaticano II uma espécie de refundação moderna da Igreja. Unidos na lógica do raciocínio, apenas se distinguirão pelo juízo final que emitem sobre tal acontecimento: para os primeiros, é o início de uma «ruptura» moderna; para os segundos, é o fim de uma «ruptura» histórica.
Num famoso discurso à Curia Romana de 2005, o Papa Bento XVI indicou, uma outra forma de interpretar o Concílio: uma «hermenêutica da reforma», isto é, um modo de ver o Concílio como uma «renovação na continuidade do único sujeito-Igreja». Importa ler bem esta fórmula. Por um lado, há «re-novação», há «re-forma». Há pois qualquer coisa de novo. O próprio Papa identifica três áreas de renovação: a relação 1. fé-ciência; 2. Igreja-Estado; 3. cristianismo e demais religiões. Por outro, há algo de fundamental que permanece: o «sujeito» de tal renovação ou reforma. A Igreja é uma só, antes, durante e depois do Concílio. Sublinhe-se, pois, que a continuidade do Concílio se condessa neste seu «sujeito-Igreja», o que manifestamente abre espaço para que reconheçamos no Vaticano II novidades de outra ordem. É pois, segundo Bento XVI, «neste conjunto de continuidade e descontinuidade a diversos níveis que consiste a natureza da verdadeira reforma» conciliar.
Estou ciente de que argumentos complexos, como este proposto pelo Papa, têm hoje particular dificuldade em ser percebidos e assumidos. Talvez isso explique parte da nossa dificuldade em chegarmos a um olhar sereno sobre estes últimos 50 anos de história da Igreja. Também eu gostava de poder simplificar esta história. Mas como bem dizia um poeta americano, «a simplicidade é tremendamente complexa».
Sugestões para aprofundar o tema:
- Discurso do Papa Bento XVI: www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/speeches/2005/december/documents/hf_ben_xvi_spe_20051222_roman-curia_po.html
- Site dedicado à divulgação do Concílio, com documentos, fotos, vídeos, artigos, etc: www.vivailconcilio.it