Ana R. Gomes
Tinta da China, 2024
A celebração dos 50 anos da revolução de Abril constitui o mote para esta investigação biográfica de Felicidade Alves, de presbítero a militante comunista. A obra nutre-se do recurso permanente ao espólio depositado na Fundação Mário Soares, incluindo cartas e apontamentos pessoais, complementado por entrevistas a contemporâneos e a um extenso levantamento bibliográfico. Num primeiro capítulo, a autora faz uma exposição breve da história da oposição católica ao Estado Novo, contexto fundamental no qual se compreende a vida de Felicidade Alves, ao mesmo tempo que se realçam as características singulares do seu percurso. Em seguida, dois densos capítulos dividem a narrativa biográfica, tendo como eixo de transição a sua saída da paróquia de Belém, ao final de doze anos de ministério.
A expressão À la gauche du Christ (“à esquerda de Cristo”), cunhada por Denis Pelletier e Jean-Louis Schlegel, poderá condensar este percurso, tendo em conta também a convicção de que a história do Cristianismo é a história daqueles que buscaram, na espessura da sua biografia, esboçar as respostas e opções para configurar, de modo sempre imperfeito, a fidelidade ao Evangelho. A narrativa apresentada por Ana R. Gomes preocupa-se em expor um eixo fundamental na vida de Felicidade Alves, explicando e contextualizando as múltiplas decisões, aparentemente díspares, que a marcaram: «Uma espécie de inquietação crónica desvenda-se em José da Felicidade Alves enquanto dimensão identitária que cedo se manifesta e perdura ao longo de todo o seu percurso sacerdotal» [199]. Uma inquietação que conduz o presbítero de destacado teólogo e protegido pelo cardeal Cerejeira, enquanto professor no seminário dos Olivais, à renovação pastoral da paróquia de Belém, antecedendo em múltiplos aspetos as mudanças desencadeadas pelo concílio Vaticano II. Quando o concílio se conclui, em 1965, já Felicidade Alves pressente que as estruturas da Igreja, quer universal, quer em Portugal, não são capazes de testemunhar o Evangelho num país marcado pela falta de liberdade políticas, pelas situações de pobreza extrema e pelo problema da guerra colonial. Entre críticas e apoios, e quando as posições públicas do pároco de Belém tomam proporções inadmissíveis para o regime, a rutura torna-se completa, com a sua destituição a 2 de novembro de 1968. Escreve Felicidade Alves numa carta, poucos meses antes deste episódio fraturante e determinante: «Não posso dar-me por satisfeito com o estado atual de tantos e tantos portugueses, que exigem mais justiça. Receio até pela vida de amigos meus. E tudo isto não me deixa viver instalado numa serenidade olímpica» [104].
A partir daqui, a vida de Felicidade Alves far-se-á fora do templo, tal como delineará num artigo do caderno GEDOC (Grupo de Estudos e Intercâmbios de Documentos, Informações, Experiências) fórum no qual centrará a sua militância política até ao seu encerramento por intervenção da DGS: «Nós não devemos querer ter acesso ao palácio, nem sequer esforçarmo-nos para que ele seja reformado – devemos lutar implacavelmente pela destruição do palácio, pois o único lugar possível (pelo menos, para os cristãos) é cá fora, no meio da humanidade que sofre, que luta e que caminha» [163]. A notável investigação realizada por Ana R. Gomes permite manter em tensão dialogante, sem separação como sem confusão, o âmbito da história (focado na problemática mais ampla da oposição católica ao Estado Novo) e o âmbito da fé, afinal o fundamento que explica o trajeto de Felicidade Alves. Este âmbito tem por referências objetivas os movimentos internacionais católicos designados de “progressistas” que, ao longo do século XX, perseguiram um maior compromisso entre fé e justiça; as correntes de pensamento teológico que procuraram renovar a conceção da Igreja e da sua relação com o mundo; finalmente, a tradição da Doutrina Social da Igreja, que Felicidade Alves, um homem inteligente, soube compreender e discernir criticamente face à sua apropriação pelo corporativismo do regime. Num tempo como o nosso, em que parece tão atrativo o intimismo de uma pertença religiosa individual, a recuperação de um percurso tão notável de participação pública na construção da democracia, alimentada pela experiência crente, constitui uma bênção a que devemos corresponder.
Rui Pedro Vasconcelos
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