Podemos falar de fé encerrando-a nos limites da prática religiosa?
O início da pregação e vida pública de Jesus desenvolve-se sob o mote do Reino de Deus. O Reino que está próximo e para o qual há que preparar caminhos, aplanar os montes, abrir veredas. A vida a testemunho de Jesus revela-nos que as portas desse Reino, que é de Paz, Justiça e Alegria, não se abrem pelo mero cumprimento de preceitos religiosos nem pelos jogos ou pelo exercício do poder, mas antes no serviço, na fraternidade, no amor.
O Reino de Deus tem que passar por uma transformação do coração que conduza ao encontro com o outro. Não para lhe impor uma ideia, uma visão do mundo ou uma moral, por mais inspiradas que nos pareçam, nem para paternalisticamente lhe proporcionar uma resposta, a nossa resposta, àquilo que nos parecem ser as suas carências.
O Cristo do Evangelho faz-se homem, vai ao encontro do outro sem aceção da sua condição, estabelece uma relação, e é nesta relação que se manifestam as necessidades deste e a resposta de Jesus. Jesus não chega com um programa de alimentação ou de cura que propõe aos seus seguidores. O seu ‘programa’ é de encontro, de estabelecimento de relações, de fraternidade. Jesus é o Deus que se faz igual aos homens e mulheres que encontra, para de todos e a todos fazer irmãos, dignos herdeiros do amor do Pai, do mesmo amor com que a todos amou primeiro.
Faz sentido uma fé que não procure fazer nosso este caminho de Jesus? Desde cedo se nos foi tornando claro que não. Na nossa caminhada de fé, com os grupos de jovens crismados que frequentámos na nossa juventude nos Olivais Sul e na comunidade de Taizé que visitámos amiúde ao longo de toda a vida, alimentámos esta perceção: a nossa transformação interior não está na adequação a um modelo ou imagem idealizada para nós, mas na abertura à operação transformadora de Jesus nos nossos corações; que esta abertura se opera no íntimo, no silêncio atento da oração… e que uma transformação interior que não se transforme em gestos no concreto da vida é apenas uma ilusão estéril.
Ao longo da nossa vida em casal, pudemos (e podemos!...) experimentar como é fácil conformarmo-nos com o caminho andado e encontrar desculpas para nos confinarmos ao sofá. Por isso, fomos cultivando uma inquietação que nos tem levado a procurar responder aos desafios que Deus nos faz na História em que vivemos e a procurar os lugares de Encontro que Jesus nos desafia a frequentar.
Se isto começou, há mais de 30 anos, por pequenos compromissos contracorrente, como a separação dos lixos e a compostagem dos nossos resíduos orgânicos, coisas que quase ninguém fazia então nem eram vistas como respostas iluminadas pela fé ao desafio divino do cuidado da Criação, outros desafios mais individuais foram surgindo, entre eles o serviço aos sem-abrigo em Lisboa com a Comunidade de Santo Egídio. A certa altura (somos muito maus a recordar datas, mas há cerca de quinze anos), olhámos para a nossa paróquia em Torres Vedras e percebemos que também aí havia pobres, também aí havia sem-abrigo. Percebemos que este não era um desafio apenas pessoal, mas podia ser um repto para responder em família. Um apelo a unir a família em torno de algo maior que ela: um amor recebido para ser partilhado.
Com outros casais, começámos então a procurar formas de ir ao encontro dos mais pobres e marginalizados na nossa cidade e na sua área de influência. Para ir ao seu encontro não como mais um serviço de apoio social, mas como um espaço informal de amizade, convívio e oração, em que as necessidades de cada um fossem também preocupação de todos, como numa grande família.
Criou-se assim a ‘Comunidade da Concha de Santiago’!
Concha de Santiago
A ‘Concha de Santiago’ é um grupo de pessoas que pretendem estar unidas por algo mais que uma relação de ‘voluntários/cuidadores’ com ‘utentes’. Cada pessoa é um desafio a estabelecer uma relação, um amigo a quem escutar, a quem aceitar como é, sem julgamentos moralistas, sem exigências de mudança, mas também sem conformismos com a realidade de cada um. Procuramos por isso ser comunidade, não instituição.
A ‘Concha de Santiago’ é para muitos, também, a ocasião de encontro, ou reencontro, com a fé, com o Evangelho, com a Igreja. No início de cada um dos nossos encontros semanais, um tempo de oração mais formal, com leituras bíblicas do Domingo seguinte e respetiva reflexão, cânticos e preces é proposto a quem quiser participar.
A refeição é partilhada por todos. A Câmara Municipal, desde há um ano, oferece refeições. Mais comida é recolhida em alguns espaços de restauração ou confecionada pelos convivas. Todos comem em conjunto, sem distinção entre quem necessita de apoio ou quem está presente no sentido de ajudar.
Depois da refeição, as recolhas feitas em espaços comerciais ao longo da semana em colaboração com o Centro Social Paroquial e mais géneros oferecidos ou adquiridos são distribuídos por todos de acordo com a dimensão da família e a sua situação (com possibilidade ou não de cozinhar).
A noite termina sempre com a recitação em comum do Pai-Nosso, numa grande roda de mãos dadas, recordando a todos que é o amor do Pai que a todos faz irmãos e que dá sentido ao que acabámos de viver.
“Vale a pena persistir”
Hoje, depois da autonomização e dispersão dos nossos 4 filhos por paragens ou opções de vida que os afastaram deste projeto, a ‘Concha de Santiago’ continua a ser um empenhamento central na nossa vida de casal. E se por vezes o desânimo, o cansaço, a tentação de um refúgio na tranquilidade de uma vida centrada no nosso bem-estar pessoal nos fazem vacilar, em cada sexta-feira, depois dos nossos encontros, regressamos a casa com o sentimento que vale a pena persistir e dar este tempo da nossa vida para construir relações de amizade e abrir as portas desta Igreja, não para esperar passivamente que alguns se atrevam a entrar, mas para sair ao seu encontro e a fazer a casa de todos, todos, todos.
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