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P. Gonçalo Portocarrero de Almada
Nós, os (in)cansáveis
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É justo e necessário elogiar aqueles que mais se destacaram nalgum trabalho ou missão, atribuindo-lhes uma série de qualidades que os fazem dignos desses louvores. Desses atributos, há um que, geralmente, nunca falta: o de que são incansáveis. Por isso, são frequentes as loas às incansáveis mães, aos incansáveis trabalhadores da saúde, aos incansáveis professores, aos incansáveis bombeiros, etc.

Que me desculpem os ‘incansáveis’ mas, na realidade, se são mesmo incansáveis, o seu mérito não é muito: mais valor têm aqueles que, mesmo cansados, perseveram no seu trabalho e missão. Embora reconhecendo o propósito laudatório da alegada incansabilidade, o valor não está em não se cansar, se tal é humanamente possível, mas em fazer o que se deve, mesmo quando se está cansado.

Nas biografias dos santos sempre houve a tendência, mais ou menos descarada, de negar os limites da natureza humana, através da exaltação de uma perfeição sobre-humana, como se os santos fossem de uma outra natureza, que não a nossa. Mais do que biografias, são autênticas apologias que, por vezes, raiam, o surreal. Quando se nos fala de santos que nunca riram nem choraram, que nunca tiveram dúvidas, que se deleitaram nos piores sacrifícios, que viveram em permanentes vigílias e jejuns, que se compraziam nas humilhações, etc., parece que se está a falar de extraterrestres e não de seres de carne e osso.

Estes bem-aventurados serão, se reais, personagens a aplaudir e admirar, mas não, decerto, a imitar, até porque é impossível que uma pessoa normal se possa rever nessas tão surpreendentes quanto improváveis virtudes. Embora o piadoso entusiasmo desses autores de vidas de santos, tão magníficas quanto inverosímeis, ofereçam exemplos extraordinários, a verdade é que não proporcionam aos cristãos normais modelos que se possam seguir e imitar.

Nós, os homens e mulheres que, no mundo, procuramos seguir a Cristo, não precisamos de santos incansáveis, mas de santos cansáveis porque também nós, como qualquer mortal, sentimos o peso do dia e do calor e, não obstante a nossa habitual fadiga, queremos ser fiéis a Deus e à sua Igreja, no cumprimento quotidiano das nossas obrigações espirituais, familiares, profissionais, etc.

Os Evangelhos não são apenas o melhor compêndio de teologia, mas também de antropologia: só em Deus o homem pode verdadeiramente conhecer-se a si próprio. Por isso, depois de Simão ter confessado que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus vivo, este deu-lhe a conhecer, pela atribuição do seu novo nome, Pedro, a sua verdadeira e definitiva identidade (Mt 16, 13-19). Jesus de Nazaré é perfeito Deus, mas é também perfeito homem: é pela Santíssima Humanidade de Jesus que somos chamados à vivência plena da nossa natureza humana e à contemplação da sua divindade, no mistério de amor que é a trindade divina.

A humanidade de Jesus de Nazaré, embora totalmente imune do pecado, conheceu as limitações próprias da condição humana, que o Verbo assumiu integralmente, ao encarnar no seio virginal de Maria.  É verdade que, como a fé afirma, Jesus Cristo é perfeito Deus e perfeito homem, mas a perfeição da sua natureza humana dá-se nas limitações que são próprias dessa condição, porque o seu corpo e alma são reais, não aparentes. Se não tivesse em comum connosco a mesma natureza, em tudo igual à nossa excepto no pecado, não podia ser exemplo a imitar e seguir.

Se havia alguém verdadeiramente ‘incansável’ esse era, sem dúvida, o Filho de Deus, porque à natureza divina não corresponde nenhuma fadiga ou desgaste, imperfeições incompatíveis com a omnipotência de Deus.

Se Jesus Cristo, enquanto Deus, é incansável, o não é, contudo, enquanto homem e, por isso, os Evangelhos oferecem-nos vários exemplos do cansaço de Jesus: no diálogo com a samaritana, junto ao poço de Jacob, o mestre aparece “fatigado da viagem” (Jo 4, 6); e, quando se levanta a tempestade no mar da Galileia, é tal a fadiga do Senhor que dorme profundamente, descansando a sua cabeça sobre uma almofada (Mc 4, 38)! Mais dramático é o seu desgaste físico e moral na sua paixão, quando é tal a sua exaustão que sua gotas de sangue (Lc 22, 44).

Não só Deus, na sua paternal solicitude, estabeleceu o preceito dominical, como Jesus providenciou o descanso dos seus apóstolos: “Vinde à parte, a um lugar solitário, e descansai um pouco”. O evangelista explica que “eram muitos os que iam e vinham e nem tinham tempo para comer” (Mc 6, 31). Aquilo que nenhum dos doze se atreveria a exigir como direito, é-lhes imposto pelo próprio Mestre, como afectuosa manifestação da sua solicitude pelos seus operários.

É missão dos que têm a seu cargo o bem-estar espiritual e humano dos sacerdotes, providenciar o seu descanso, sobretudo ao terminar mais um ano de intensa actividade pastoral. Não se trata de dispensar ou suspender alguém de uma missão que, por ser vocacional, abarca a totalidade da vida, mas proporcionar que a necessária paragem nas actividades habituais seja uma ocasião para descansar – “um pouco”, como disse o Senhor, porque, também no descanso, deve haver moderação – e para dar mais atenção à vida espiritual. E é obrigação dos fiéis respeitar esse breve descanso, para que seja verdadeiramente reparador das forças humanas e espirituais do seu pastor.

Dos ‘santos’ que, por presunção, se supõem ‘incansáveis’, livrai-nos Senhor! Mas dai um santo descanso aos pastores cansáveis, para que nos possam guiar com o testemunho da sua vida santa e servir, depois, ainda mais e melhor, com o seu trabalho pastoral.

 

P. Gonçalo Portocarrero de Almada