DOMINGO IV COMUM Ano B
“Todos se maravilhavam com a sua doutrina,
porque os ensinava com autoridade.”
Mc 1, 22
Quais foram as primeiras palavras que ouvimos? Escutados desde no ventre materno, quando é que aqueles sons ganharam corpo e sentido? Primeiro foram as vozes, as melodias, os ruídos que se diferenciavam. Falar começa antes de ler, e de escrever, não é? Como e quando se gravaram no nosso barro interior as palavras fundamentais que são alicerce da vida? Canto o amor às palavras com um poema de Eugénio de Andrade: “São como um cristal, / as palavras. / Algumas, um punhal, /um incêndio. / Outras, / orvalho apenas. // Secretas vêm, cheias de memória. / Inseguras navegam: / barcos ou beijos, as águas estremecem. // Desamparadas, inocentes, / leves. / Tecidas são de luz / e são a noite. / E mesmo pálidas / verdes paraísos lembram ainda. // Quem as escuta? Quem / as recolhe, assim, / cruéis, desfeitas, / nas suas conchas puras?”
Não vivemos uma crise das palavras? 24 horas constantes de palavras e música, de imagens (que alguém disse valerem mais do que “mil palavras”), de discursos e intervenções tantas vezes a dizer as mesmas coisas, de “medo do silêncio”, de ligação permanente em redes, dos “ding” a trazer mais notícias, ou publicidade, ou…! Como escolher e processar o que recebemos? Onde temos possibilidade de acolher as palavras belas, verdadeiras e boas? Para não cairmos nos lamentos de Dalida “paroles, paroles!”… ou de Carlos Paião, cantado por Cândida Branca-Flôr: “são palavras ocas, faz orelhas moucas, não te deixes enganar!”
Por estes dias os padres do Patriarcado de Lisboa reflectimos sobre “A Palavra de Deus: bela, verdadeira e boa”. Jesus começa por maravilhar os seus ouvintes na sinagoga de Cafarnaum. Diz palavras que não são repetição de fórmulas ou doutrinas como os habituais pregadores, e atrai os ouvidos e os corações. Ninguém adormece ao ouvi-l’O, e há centelhas de lume que começam a reacender as fogueiras interiores há muito apagadas. O profeta Jeremias tinha dito: “Vós me seduzistes, Senhor e eu deixei-me seduzir” (20,7). Sentem-se abraçados, levantados, rejuvenescidos, restaurados, naquelas palavras. A sua beleza atraia e contagia.
S. Marcos não conta o que Jesus disse naquela manhã: só sabemos que foi “boa nova”. Dita com autoridade. Não aquela que estamos habituados a identificar na força, no convencimento, na lei ou na imposição. Mas a da verdade, que penetra como a água cristalina por entre a terra ressequida e faz germinar as sementes. A verdade que derruba as falsas ideias do Deus distante, vingativo, sempre zangado com os homens, e convida a entrar no mistério do amor pleno. A verdade que liberta de tudo o que escraviza o homem. O que S. Marcos conta é o que Jesus fez: a cura de um homem com um espírito impuro. A palavra de Jesus realiza aquilo que diz: “Cala-te e sai desse homem!”. É a palavra boa que restaura a dignidade aprisionada, que abre horizontes e salva. É esse o dinamismo da Palavra que Jesus é para cada pessoa: atrai, dá sentido, e salva. Como O testemunhamos sem O acolher?
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