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Alfredo Bruto da Costa: Todos os agentes políticos e sociais deveriam ler a encíclica ?Caritas in Veritate?
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O presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz, Alfredo Bruto da Costa, entende que a nova encíclica do Papa não é um documento «sobre a crise» e aconselha a sua leitura a todos os agentes políticos e sociais. Nesta entrevista ao Jornal W, Bruto da Costa considera ainda que a terceira encíclica de Bento XVI se situa “na sequência do ensinamento social da Igreja”.

Que primeira análise faz à nova encíclica do Papa, “Caritas in Veritate”?

Sucintamente, assinalaria dois aspectos. O primeiro é o de que, contrariamente ao que se chegou a dizer, o documento não é «sobre a crise». É um documento muito mais abrangente, porém, tendo presente o facto de ter sido escrito em tempo de crise. Em certa medida, a crise vem tornar mais visíveis e claros alguns erros e deficiências graves do modo como as sociedades e o mundo estão organizados e funcionam, e pode, nesse sentido, facilitar o reconhecimento das mudanças que se impõem. O segundo aspecto diz respeito à visão integral do ser humano e da sociedade, mostrando a relação íntima que existe entre edificar a «cidade dos homens» e construir a «cidade de Deus».

 

De que forma é que a encíclica pode “enriquecer a sociedade portuguesa”, como considerou o presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, D. Jorge Ortiga?

A encíclica vem revelar, uma vez mais, que vivemos num mundo com baixo «teor» de humanidade («desenvolvimento do homem todo e de todos os homens»). E, na generalidade, os cristãos não têm sido excepção socialmente assinalável nesta matéria. O enriquecimento que pode vir da encíclica consiste precisamente em assumir os seus conteúdos humanos e teológicos e viver em conformidade. Um dos aspectos relevantes que Bento XVI sublinha, nesta como nas anteriores encíclicas, é o de que a dimensão social, relacional, do ser humano é tão essencial como a sua dimensão individual. É uma mensagem forte para uma sociedade e um mundo que têm estado demasiado subjugados pelo individualismo. Uma outra nota particularmente importante da encíclica é a ênfase que põe na relação da caridade com a justiça e o bem comum. Cito apenas duas passagens relevantes a este respeito: “Não posso «dar» ao outro do que é meu [caridade], sem antes lhe ter dado aquilo que lhe compete por justiça.” (n. 6); “Ama-se tanto mais eficazmente o próximo, quanto mais se trabalha em prol de um bem comum que dê resposta também às suas necessidade reais”.(n. 7). Uma sociedade que se guie por estes princípios será, certamente, uma sociedade mais rica em humanidade.

 

Também aconselharia todos os agentes políticos e sociais a ler a nova encíclica de Bento XVI? Porquê?

Certamente, em primeiro lugar porque entre os agentes políticos e sociais também há cristãos. Em segundo lugar, porque a encíclica dirige-se não apenas aos cristãos, mas também a “todos os homens de boa vontade”. A visão do ser humano, da sociedade, da economia, da política, do ambiente, do mundo globalizado em que vivemos e da fé cristã interessam a todos os homens e mulheres. Neste sentido, todos os agentes políticos e sociais, e através deles a sociedade, certamente beneficiarão com a sua leitura.

 

Qual a importância da introdução da dimensão política do amor e da necessidade de renovação do conceito de caridade, que são expressos na nova encíclica?

Em rigor, esta doutrina não é nova. É, certamente, um sublinhar do que a Igreja vem proclamando há muito tempo, embora, no meu humilde pensar, tenha sido subestimado na pregação corrente. Dizia um teólogo que, quando encontramos alguém com fome, devemos dar-lhe de comer. Porem, se quisermos (como devemos) não ficar por aí, havemos de perguntar: porque é que ele não tem para comer? A análise desta questão levar-nos-á a verificar que as raízes dessa situação estão no modo como a sociedade está organizada e funciona. Nessa altura, a nossa caridade por esse pobre impele-nos a querer uma sociedade mais humana, ou seja, a caridade ganha uma dimensão política. Ao mesmo tempo, essa análise revela como a caridade é inseparável da justiça. O Papa alude aos “desvios e esvaziamento de sentido que a caridade não cessa de enfrentar” e ajuda a recolocá-la no sentido correcto, designadamente através da relação da caridade com a verdade: “Sem verdade, a caridade cai no sentimentalismo. O amor torna-se um invólucro vazio, que se pode encher arbitrariamente.”(n. 3); “Um cristianismo de caridade sem verdade pode ser facilmente confundido com uma reserva de bons sentimentos, úteis para a convivência social mas marginais.”(n. 4); “amar é dar, oferecer ao outro do que é «meu»; mas nunca existe sem a justiça, que induz a dar ao outro o que é «dele», o que lhe pertence em razão do seu ser e do seu agir. Não posso «dar» ao outro do que é meu, sem antes lhe ter dado aquilo que lhe compete por justiça. Quem ama os outros com caridade é, antes de mais nada, justo para com eles.”(n. 5).

No mundo globalizado em que vivemos, é evidente que não podemos limitar a nossa preocupação ao que nos está geograficamente perto. Temos de ter consciência de que a caridade, a justiça e o bem comum têm hoje uma dimensão mundial.

 

A carta do Papa apela à fraternidade universal. Este é também um conselho dirigido aos cristãos…

Esta pergunta traz-me calafrios! Como poderia ser de outro modo? Para quem tivesse dúvidas a este respeito, o mesmo Papa escreveu na sua primeira encíclica (Deus caritas est): “A parábola do bom Samaritano (cf. Lc 10, 25-37) leva a dois esclarecimentos importantes. Enquanto o conceito de «próximo», até então, se referia essencialmente aos concidadãos e aos estrangeiros que se tinham estabelecido na terra de Israel, ou seja, à comunidade solidária de um país e de um povo, agora este limite é abolido. Qualquer um que necessite de mim e eu possa ajudá-lo, é o meu próximo. O conceito de próximo fica universalizado, sem deixar todavia de ser concreto. Apesar da sua extensão a todos os homens, não se reduz à expressão de um amor genérico e abstracto, em si mesmo pouco comprometedor, mas requer o meu empenho prático aqui e agora.”(n. 15).

 

O Papa considera também urgente a reforma das Nações Unidas e da arquitectura económica e financeira internacional, defendendo uma autoridade política global, regida pelos princípios da subsidiariedade e solidariedade. Como vê estas orientações?

O pensamento social da Igreja vem realçando, desde há muito, algumas implicações do facto de vivermos inseridos em contextos sociais, que vão desde a família até ao mundo inteiro. Na encíclica Pacem in Terris, de 1963, o Papa João XXIII sublinhou a muitas cores a noção do bem comum universal, e notou que “O bem comum universal levanta hoje (1963) problemas de dimensão mundial que não podem ser enfrentados e resolvidos adequadamente senão por poderes públicos que possuam autoridade, estruturas e meios de idênticas proporções, isto é, de poderes públicos que estejam em condições de agir de modo eficiente no plano mundial. Portanto – acrescenta João XXIII –, é a própria ordem moral que exige a instituição de alguma autoridade pública universal.” (João XIII, Pacem in Terris, nº136.)

Como se vê, a preocupação por uma arquitectura institucional internacional não é nova. Não tenho dúvidas de que essa necessidade é hoje muito mais urgente do que em 1963 e penso que deve situar-se no âmbito das Nações Unidas. Só assim, a ONU estará à altura de um mundo globalizado e deixaremos de estar dependentes dos Gs (G8, G20, etc.), que tomam decisões sem qualquer representatividade mundial.

 

O economista João César das Neves considera que esta encíclica apresenta uma “nova fundamentação da Doutrina Social da Igreja, baseada nos conceitos de caridade e verdade”. Qual é a sua opinião?

Não gosto de comentar afirmações de que não conheça o contexto em que foram feitas. Por isso, não comentarei a observação do meu amigo César das Neves. O que me ocorre pessoalmente dizer é que entendo a doutrina social da Igreja se situa no domínio da teologia, mais particularmente da teologia moral, como disse João Paulo II na encíclica Sollicitudo rei socialis (n. 41), afirmação que retomou na encíclica Centesimus annus. Neste entendimento, a justiça e a caridade sempre estiveram entre os fundamentos dessa doutrina. O que esta encíclica faz é realçar as implicações desses fundamentos, quer individualmente considerados, quer na relação entre ambos.

Para evitar mal-entendidos, gostaria de salientar que o facto de a doutrina social da Igreja se situar no domínio da teologia não quer dizer que o que propõe só seja válido para os cristãos. A fé permite levar «mais longe» e «mais fundo» o que decorre da antropologia, da sociologia e de outras ciências e é plenamente reconhecido pela Igreja. Daí que as propostas da doutrina social sejam dirigidas a todos os homens e mulheres.


A encíclica é então mais um passo na concretização da Doutrina Social da Igreja para o século XXI?

A meu ver, a terceira encíclica de Bento XVI situa-se na sequência do ensinamento social da Igreja, confirmando princípios, aprofundando algumas implicações e adaptando a sua leitura ao nosso mundo fortemente globalizado a braços com uma grave crise económica, financeira e social. É um documento verdadeiramente actual e rico de propostas. Gostaria de pensar que não será um documento «para o século XXI», uma vez que o nosso mundo sofre mutações rápidas e profundas que certamente suscitarão novas actualizações e aprofundamentos do ensinamento social da Igreja.


Ao nível da Comissão Nacional Justiça e Paz, a que preside, estão previstas algumas iniciativas para o estudo e reflexão da encíclica “Caritas in Veritate”?

A Comissão Nacional Justiça e Paz irá, certamente, tomar iniciativas relacionadas com a encíclica. Ainda não está decidido o formato nem o calendário da acção concreta.

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