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DOMINGO I QUARESMA Ano C
“Está escrito: ‘Nem só de pão vive o homem’.”
Lc 4, 4


Hominem unius libri timeo” é uma frase atribuída a S. Tomás de Aquino e pode traduzir-se por: “teme o homem de um só livro”! São várias as interpretações possíveis: pode significar o respeito por quem tem uma ideia e uma causa a que se dedica totalmente, mas também o receito do fanatismo de quem “leu apenas um livro”! Escolhi-a para iniciar esta coluna porque, no relato das tentações de Jesus no deserto, que os evangelistas sinópticos colocam imediatamente ao seu baptismo, Jesus responde ao diabo com citações de textos bíblicos. E, com alguma surpresa, o próprio diabo revela que também conhece a Bíblia, e envolve a última tentação com frases do Salmo 91! Dos livros bíblicos (pois de uma biblioteca se trata!) aos livros perigosos ou proibidos (que muitos desejariam simplesmente eliminar) pode perguntar-se como cultivamos nos nossos dias o hábito de ler, e como continua a haver lugar para eles no meio de tanta tecnologia.

Quem não se lembra da trama de “O nome da Rosa” de Umberto Eco à volta de um pretenso livros de Aristóteles que era preciso esconder porque fazia a apologia do riso (e isso era demoníaco!)? Ou da novela de Ray Bradbury intitulada “Fahrenheit 451” que imaginava uma sociedade futura, hedonista e anti-intelectual em que os livros eram proibidos e deviam ser queimados por propagarem ideias absurdas e contrárias ao bem-estar da sociedade? A ficção parece tornada realidade, como noticiava o Diário de Notícias a 5 de fevereiro: “São cinco os livreiros de Hong Kong desaparecidos desde outubro, todos eles ligados à Causeway Bay Books, conhecida por vender livros críticos do regime chinês.” E será que alguém se deu conta da notícia recente de um “movimento de estudantes universitários norte-americanos a pedir que os protejam dos conteúdos de alguns livros que consideram perigosos”, sobretudo de clássicos da literatura grega e romana (Público, 07.02.2016)? A notícia mereceu uma belíssima reflexão da psiquiatra Manuela Correia de que destaco: “Os livros em si não são perigosos, eles fazem parte de uma constelação de comportamentos. (…) Desenvolvemos a linguagem se pensarmos, e se tivermos uma linguagem rica também pensamos melhor. Há um empobrecimento do vocabulário e um empobrecimento do pensamento.

Nas respostas de Jesus ao diabo, a força da palavra bíblica não é um “slogan publicitário”. Brota da sua identidade de ser o “Verbo feito carne”, a Palavra de Deus que recria, liberta e salva, e na sua verdadeira humanidade não deixa de ser tentado, como cada um de nós. Lucas termina o relato sublinhando toda a vida de tentação que irá culminar da cruz: “Salvou os outros; salve-se a si mesmo, se é o Messias de Deus”(23, 35). Mas isso seria ceder à tentação primeira do egoísmo, de buscar o próprio interesse, de viver em função de si, e usar Deus, em vez de ouvir os gritos de quem sofre, como tantas vezes a opulência e o bem estar material “anestesiam” o cristianismo que vivemos. Nas outras duas tentações, Jesus recusa (e convida-nos a recusar também) o “poder e a glória” (título de um extraordinário livro de Graham Greene), e o êxito fácil.

Entramos em Quaresma em ambiente de luta e de escolha. Ler e pensar são dois grandes presentes de qualquer livro. E a Bíblia continua a ser um dos mais interpeladores. Se nas suas palavras, e nas de muitos livros lidos, vislumbrarmos como Deus nos ama livres e responsáveis, a Páscoa acontecerá todos os dias!

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