A “Enciclopédia Interdisciplinar de Ciência e Fé” é uma obra que, segundo a apresentação, “surge num contexto propício a clarificar a compatibilidade entre ciência e fé”. Qual é, efectivamente, a compatibilidade ciência-fé?
Em Portugal, discute-se com mais frequência essa compatibilidade do que no estrangeiro. Ao nível internacional é cada vez mais pacífica a ideia de que há compatibilidade entre ciência e fé. Isso é o mais frequente no âmbito internacional, entre cientistas verdadeiros e também teólogos verdadeiros. Não é, digamos assim, activo e constante, esta ideia da antinomia entre a fé e a razão.
A razão está sempre presente, mesmo na fé; assim como na ciência também está presente muita coisa do espírito, porque pensa, discute, argumenta. Nas Academias, isto é, nos grupos internacionais que se constituem – algumas inclusive com o apoio da Santa Sé – há a autonomia da ciência e a autonomia da fé. A ciência procura ter argumentos para as afirmações e para as ideias com as quais lida. A fé tem também uma base de raciocínio, de discussão, de apuramento da verdade ao nível da capacidade da razão. Só que neste campo, a razão fornece argumentos para afirmar e aceitar a fé. Mas estes não são argumentos de natureza científica, porque a ciência tem alguma argumentação que lida mais com as realidades materiais, mais próximas e tudo isso são princípios nos quais se baseia. Mas isso não impede, uma vez que o homem tem capacidades que ultrapassam a matéria, que se vá mais além, que possa até aferir os conhecimentos que lhe são ministrados pela teologia, raciocinando, pensando discutindo, servindo-se até, por vezes, da ciência. Ambas têm verdades e raciocínios no seu seio e são cada vez em menor número os cientistas que vêem uma contradição entre fé e razão.
As relações entre a verdade religiosa e a verdade científica são temas de frequentes debates. Ciência e fé podem então ter um diálogo possível.
O raciocínio sobre a ciência é de natureza diferente da do raciocínio que se aplica na teologia. Santo Agostinho, que tem afirmações taxativas a este respeito, diz que “a fé precede a própria razão”. E porquê? Porque tem de lidar primeiro, antes de se pronunciar sobre realidades que tem debaixo dos olhos, sobre a metodologia utilizada para chegar a essa conclusão. Mesmo quando estamos numa atmosfera de fé, os elementos que estão incluídos na fé são de uma natureza diferenciada. Só podemos lidar com a fé sabendo que ela existe. E existe aonde? A fé, ainda antes de termos analisado com toda a profundidade, ainda antes de termos chegado a uma conclusão que afirma a veracidade daquilo que é o conteúdo da fé, faz com que a fé esteja presente. Até porque é ela que vai provocar a discussão. Não partimos do nada absoluto. Só podemos falar de fé se conhecermos alguma coisa, porque a fé também é uma afirmação. Portanto, para podermos discutir e aprofundar a fé em si mesma, temos de saber primeiro o que é a fé de algum modo. Aqui está, logo à partida, eliminada toda e qualquer heteronomia e até incompatibilidade ciência-fé.
Voltaire (1694-1778), racionalista e considerado um inimigo sagaz da fé católica, foi ‘obrigado’ a dizer: “O mundo perturba-me e não posso imaginar que este relógio funcione e não tenha tido relojoeiro”. Passados mais de duzentos anos desta afirmação, o que responderia a um cientista que afirme haver no mundo apenas matéria?
Voltaire afirmar que tem dúvidas significa que o seu ateísmo, a sua recusa em aceitar a fé, está posta também em causa. Voltaire é mais um deísta do que propriamente um ateu. Deísta quer dizer que dá a Deus fisionomias – no caso espirituais – e maneiras de ser e de se apresentar. O ser deísta já retira a qualidade de ateu.
Agora, se um cientista afirmar que no mundo há apenas matéria, ele só pode fazer tal afirmação por preguiça, por conveniência, por ignorância e por superficialidade.
As pesquisas científicas poderão um dia provar a existência de Deus?
Não, porque ela está provada! Com isto, está aí presente um tipo de demonstração que seria infalível. E seria, mais ou menos, a maneira de ver e de abordar essa pessoa ou esse ser, de uma maneira vivida, sensível porque senão não faz sentido. Poderá um dia provar a existência de Deus? Se existem já tantas provas…
Deus, no cristianismo, é uma realidade que excede totalmente a realidade humana.
Três perguntas a João Guedes, director editorial da Verbo
Porque é que a Editorial Verbo decidiu lançar a obra “Enciclopédia Interdisciplinar de Ciência e Fé”?
A Enciclopédia foi feita para mostrar que a ciência e a fé podem ter – e devem ter – um diálogo. Esta obra é um conjunto seleccionado de temas, que interessam principalmente à ciência e à fé, onde foi dado predominância à escolha de temas em que pudesse haver esse diálogo.
Esta é uma obra que ajuda a clarificar a compatibilidade entre ciência e fé?
Os crentes precisam de saber que essa compatibilidade existe. Ao mesmo tempo, é importante que os crentes queiram debater os assuntos. Há uma procura desta unidade do saber e esperamos que esta Enciclopédia contribua para tal.
A coordenação da edição portuguesa da “Enciclopédia Interdisciplinar de Ciência e Fé” foi feita pelo padre Manuel da Costa Freitas, juntamente com um grupo de docentes e investigadores: António Amaral, Inês Bolinhas, João Gama. Artur Morão, Américo Pereira e José da Silva Rosa.
A maior parte dos autores são professores universitários, muitos deles com dois graus universitários: um, numa cientifica e outro numa área humanística. E todos com uma base de formação religiosa católica. São pessoas que têm esse diálogo dentro deles e que o passaram para a Enciclopédia.
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