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Ver, julgar e agir?
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De facto, o historiador e intelectual tem procurado encontrar caminhos de diálogo orientados para diante. Ainda recentemente recordávamos aqui a figura de António Lino Neto, e a biografia publicada sobre o político cristão na Primeira República é antecedida de uma nota do agora premiado, onde este assinala a necessidade de não olhar a acção de católicos como algo monolítico. Por isso, para os dois últimos séculos portugueses, tem procurado pistas novas de leitura que busquem sinais de convergência entre a tradição cristã e a liberdade.
Quando há pouco mais de um ano apresentei um dos seus livros – “Portugal e os Portugueses” – disse a propósito da identidade portuguesa: «“Fruto mole na casca e duro por dentro”. Somos assim. António José Saraiva tem razão (di-lo D. Manuel Clemente). Tudo junto contribuiu (com a geografia e a história à mistura) para construirmos e reconstruirmos o novo sobre o velho, com o tecido da saudade, como lembrança e desejo e como “delicioso pungir de acerbo espinho”. E será a poesia sinal de reconhecimento? Aqui teremos de usar cautelas especiais, pois a poesia também é cíclica – desde os trovadores aos romanceiros, até Sá de Miranda e Camões, a Antero, Cesário, Camilo Pessanha, Pessoa, até chegar a Ruy Belo, Ruy Cinatti, Sophia ou José Tolentino Mendonça. Mas cuidado, a poesia vem e vai, conforme abrimos ou fechamos o nosso coração. Mas é verdade que “quando nos relacionamos bem com Portugal, fazemo-lo com um país mais sentimental do que mentalmente definido, como se a espuma das ondas nos toldasse a visão”. E Camões soube entender esse maravilhoso no curso histórico (Ourique, Batalha, Índia) – como o tinham feito Fernão Lopes ou D. Duarte, mas antes deles S. Teotónio e os cónegos de Santa Cruz de Coimbra, e depois deles Bernardim e Garrett. E onde estamos representados? Nos Painéis de Nuno Gonçalves ou na caricatura de Rafael Bordalo Pinheiro? E se virmos bem estamos nos dois lugares e nas duas atitudes – veja-se as cidades até ao século XVIII: nobreza e plebe coexistem no mesmo espaço citadino. E o certo é que “vamos andando, apesar de tudo. E muito à portuguesa, ‘depois se verá’, o que também é já um saber de experiência feito”». Homem culto, capaz de compreender os sinais dos tempos, Manuel Clemente tem sido um interrogador da cultura e um mobilizador da sociedade contra o fatalismo e as intolerâncias. É um bom sinal que o Prémio lhe tenha sido atribuído. Como diria o Padre Joaquim Alves Correia: “o espírito de Deus e de Jesus é de amor, compaixão e liberdade”. Ser-nos-á dado compreender que hoje há um sobressalto ético que devemos cultivar? * Deixou-nos nos primeiros dias de Dezembro Manuel de Oliveira Campos (1914-2009), que foi uma das referências históricas do militantismo cristão de meados do século XX. Presidente nacional da Juventude Operária Católica na década de quarenta foi uma das pessoas que em Portugal mais se bateu na prática pela criação de uma consciência cristã que permitisse a concretização dos princípios de justiça e de solidariedade defendidos pela doutrina social da Igreja. Por outro lado, como editor católico na Livraria Sampedro, nos anos cinquenta e sessenta, teve um papel importante na divulgação de documentos fundamentais para a formação e desenvolvimento do espírito do Concílio Vaticano II. Trabalhou muito proximamente de Monsenhor Joseph Cardijn, fundador da Juventude Operária Católica, futuro Cardeal, grande referência dos movimentos de trabalhadores cristãos, e do Padre Abel Varzim. Incansável trabalhador, organizador determinado, teve a rara capacidade de compreender as profundas mudanças económicas e sociais da industrialização. Manuel Campos abriu, assim, caminho para a mobilização de vontades no sentido da tomada de consciência dos direitos ligados ao mundo do trabalho. E era muito difícil agir nesse domínio, num tempo em que havia fortes condicionantes de raiz política e social. Se dúvidas houvesse, bastaria lembrar as pressões sentidas pelo Padre Varzim, designadamente em “O Trabalhador” (cuja publicação foi suspensa em 1946), recordando-se a carta dirigida a Salazar em 15 de Maio de 1942, por ocasião do aniversário da Encíclica "Rerum Novarum", reclamando o estabelecimento do salário familiar, face à difícil situação económica das famílias dos trabalhadores. Depois de 1942, a voz do Padre Abel Varzim tornou-se cada vez mais crítica, num sentido que viria a ser corroborado pela Acção Católica Operária, em especial pelo movimento juvenil. O certo é que foi na década de quarenta que se prepararam os métodos e as pistas de acção que se desenvolveram na JOC e na LOC ao longo dos tempos seguintes. “Va libérer mon peuple!” – era o lema do Padre Cardijn, que os jovens da geração de Manuel de Oliveira Campos procuraram levar à prática, seguido o método: ver, julgar e agir. Não podemos esquecer o exemplo e a memória dessa geração de coragem.