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Só com todos (por Hermínio Rico, sj.)
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Só com todos, com cada um a assumir responsabilidade pelo total que afecta a todos em conjunto, sem ninguém se eximir a partilhar a quota justa dos sacrifícios no imediato; só com a mobilização geral de um esforço extra, na medida da capacidade e do papel de cada qual; só assim será possível, no prazo mais curto possível e evitando constrições ainda maiores e mais iníquas, inverter o caminho de declínio, empobrecimento e injustiça e reconstituir horizontes de esperança.
A situação é tão grave, as distorções introduzidas e os desequilíbrios insustentáveis tão disseminados, a urgência e dimensão dos ajustamentos financeiros de tal ordem, que estamos perante um desafio extra-ordinário, uma excepção no percurso sempre em tensão dos equilíbrios sociais e políticos.
As respostas habituais não servem. Estamos num tempo em que as prioridades terão que ser diferentes, excepcionais também. Muito mais que em qualquer outra ocasião, é preciso fortalecer o que nos une e relativizar o que nos distingue. A capacidade de mobilização em torno a objectivos fundamentais comuns, deixando em lugar secundário legítimas diferenças de interesses particulares, tornou-se uma questão de sobrevivência colectiva autónoma. É vital cair na conta que agora, de forma transitória mas incontornável, a prioridade está em reconstruir os fundamentos sólidos que voltarão a tornar possível a reivindicação de direitos específicos individuais e corporativos e a luta democrática por interesses diversos. Sem este interlúdio para tratar das bases imprescindíveis para suportar o confronto das diferenças, todas as pequenas vitórias alcançadas por um grupo à custa de outros outros não passarão, a breve trecho, de vitórias de Pirro.
E, no entanto, parece que tudo continua a jogar-se como dantes! Nas lutas político-partidários, nos conflitos laborais, nas demonstrações de falta de sentido do bem comum, de consciência cívica e de responsabilidade social, nas defesas despudoradas de interesses corporativos... o que ressalta logo é a distinção entre um “nós” particular, delimitado (os “nossos” direitos, a especificidade da “nossa” situação, a justiça das “nossas” reivindicações), e “eles”, os outros, os culpados pelo estado de coisas a que chegámos, os que, obviamente, devem arcar com os custos, os que maldosamente nos estão a tentar sonegar prerrogativas mais do que justas (muito diferentes, portanto, dos privilégios deles...), os que têm como dever primeiro atender à satisfação dos “nossos” direitos. “Nós” e “eles”, os outros...
Enquanto o ponto de partida for este, sublinhando oque nos divide, dificilmente se conseguirão soluções sólidas, duradouras. É preciso começar pelo objectivo de um futuro de mais desenvolvimento e mais justiça social, a partir de um olhar centrado no bem comum e na sustentabilidade a longo prazo, objectivo fundamental em que todos nos revemos e nos comprometemos a começar já a construir. Que todos e cada assumam, agora, a sua responsabilidade pela viabilização dum futuro melhor é muito mais urgente que a busca dos culpados pelas decisões do passado que nos trouxeram até este presente. Tanto mais que será difícil encontrar muitos que, directamente ou indirectamente, não sejam responsáveis, à sua medida, pela situação que demoradamente se foi construindo ou não tenham vindo a beneficiar de benesses com custos bem acima das nossas posses, pagos, no imediato, por crédito vindo de fora, atirando a factura para as gerações vindouras.
Não é mais possível continuar a adiar os custos para o futuro – o endividamento chegou a níveis incomportáveis. Como não é possível alimentar a ilusão que vamos todos conseguir escapar sem grandes custos, através de manobras dilatórias à espera duma solução milagrosa sem dor que há-de aparecer, finalmente, vinda de um lado qualquer, mais tarde ou mais cedo. E, sobretudo, é insuportável tolerar que alguns queiram usar do seu poder para ficarem de fora da partilha proporcionada dos sacrifícios que a todos cabe por razão de justiça. Estas tentativas acrescentam mais um nível de injustiça a outras exclusões que interesses corporativos instalados criam e sustentam. E são tanto mais despudoradas porque se defendem em nome duma justiça que se identifica apenas com a preservação unilateral de direitos adquiridos (e às vezes até não justificados), esquecendo que a justiça social tem que olhar ao bem comum que concerne a todos, com particular atenção aos mais vulneráveis.
Só com todos, já, podemos começar agora a construir o futuro de todos.